Vícios
SÃO GONÇALO DE AFETOS
Por Paulinho Freitas
É difícil entender e aceitar um viciado. Eles estão em vários níveis de aceitação na sociedade e alguns passam imperceptíveis por todos nós.
Conheci um cara viciado em trabalho, onde estava, pensava num jeito de enfiar o trabalho dele no assunto, chegava a ser chato.
Durante quarenta anos fumei desbragadamente, eram quatro maços de cigarros por dia, uma coisa insuportável. Não tinha limites a minha falta de educação. Fumava no ônibus, no banheiro, no escritório, meu Deus! Que vício horroroso! Deixava de comprar comida para comprar cigarros. Uma vergonha! Consegui deixar de fumar, fazem uns quinze anos, mas supero ainda a vontade de tragar um cigarrinho todos os dias, uma luta que estou vencendo e querendo continuar vencendo.
Um outro conhecido, grande músico e poeta, era viciado em tudo que é droga. Fumava, cheirava, aplicava na veia, chupava bala e o que viesse pela frente, sendo droga, ele encarava.
Certo dia chegou em casa, pegou todas as drogas que tinha, jogou na privada e deu descarga, jurou nunca mais usar. De todas as drogas, a cachaça foi a que o fez demorar mais tempo para deixar, três longos anos. O cigarro, até hoje luta e não consegue deixar.
Amar também vicia. Tem mãe viciada em filho, dia e noite sem trégua pensa no rebento, vive para aquele ser que ela gerou. Sufocam mesmo, sem nenhum constrangimento e não há como freá-las. Amar demais faz as pessoas perderem até o amor próprio, se entregando de corpo e alma a outra pessoa anulando a própria vida. Umas, inclusive, traem por amor. Numa outra oportunidade vou provar o que estou dizendo.
Tem os viciados em furtar coisas do alheio, alguns roubam só por prazer, “sem fins lucrativos”, querem ter aquela coisa, guardar e só. Outros roubam para sustentar outros vícios. Não tem respeito nem pela própria casa, roubam os pais, irmãos, objetos de amigos e o que aparecer, que possa se transformar no prazer que o objeto do vício dá, mesmo por alguns minutos.
Alguns se humilham, vão ao fundo do poço, chafurdam na lama, por uma dose, uma tragada, uma picada, um afago, um colo, um ombro.
Estou escrevendo este texto hoje, lembrando de uma época em que trabalhei como trocador de ônibus. A linha era Zumbi/Alcântara. Daquela roleta, lamentando minha sorte, pois odiava estar ali, vi, como num filme algumas histórias passando pela janela, que me marcaram muito.
Um casal que morava numa casa metade tijolo e metade madeira, todos os dias esperavam o ônibus agarradinhos na porta de casa. Quando o ônibus apontava na esquina, beijavam-se calorosamente, como um casal de namorados numa emocionante despedida. O ônibus ia se afastando e os dois não desviavam o olhar até sumir um do outro na próxima curva. Fiquei no trabalho por longos nove meses, tempo suficiente para vê-lo beijando a barriga dela, indicando que um fruto estava a caminho. Talvez, hoje sejam mais de um. Tomara que com o mesmo amor.
Dois rapazes que trabalhavam na coleta de lixo, também viajavam no mesmo ônibus, na mesma hora. Os dois eram engraçadíssimos e só viviam rindo. A alegria deles contagiava os outros passageiros que chegavam leves a seus destinos.
Numa noite de sábado, última viagem, avistei os dois numa birosca no alto do morro. A música estava alta e os dois se humilhavam num beijo de língua para ganhar uma dose de cachaça enquanto as pessoas em volta davam gargalhadas insanas. Naquele dia tive a certeza de que o viciado precisa de ajuda. Ele não percebe o mal que faz a si e aos que estão a sua volta. Ele está doente e não se dá conta disso. Amigos nossos, familiares, vão se despedindo da vida através dos vícios, sejam lá quais forem, sem se darem conta e sem que nós percebamos. Julgamos e condenamos, achamos que somos os donos da verdade, quando na verdade também possamos estar viciados em alguma coisa. Somos, todos nós, viciados em invisibilizar os problemas alheios. É melhor não ver, para não sentir. Isto é triste.
Ah! Meu São Gonçalo! Protegei os filhos de sua terra!
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.