top of page
Foto do escritorJornal Daki

Vozes da vida

SÃO GONÇALO DE AFETOS


Por Paulinho Freitas

Foto: Felipe Aguiar/Divulgação OSG

Quando eu era pequeno e ouvia minha mãe ou minha avó me chamando eu já tinha noção de como estava o humor delas para comigo. Se me chamassem: Pauliiiiinho! Ou era para me dar alguma coisa, ou para saber onde é que eu estava. Se minha avó, por exemplo, com aquela vozinha fina, mas firme, me achasse assim: Paulooooo! Xiiiiii! Era encrenca na certa. 


Meu pai, como a maioria dos pais de minha época era de pouco sorrir e de pouco falar. Parecia que vivia num mundo paralelo, sempre trabalhando e chegando tarde em casa. Quando estava de folga, estava sempre com o olhar pensativo. Quatro filhos para sustentar, devia ficar pensando o tempo todo onde ia arranjar grana para suprir as despesas, criança quanto mais cresce, mais come. Dificilmente me chamava para me dar alguma coisa, então, quando aquela voz de trovão chamava: _ Seu Paulinho! Lá vem problema! Alguma merda eu fiz e ele não gostou. 


Fui crescendo distinguindo as vozes que me chamavam e sabendo já me preparar para a resposta, sempre alerta aos sinais! Se meu filho vem me falar algo, eu já sei se é problema ou notícia boa. Se é notícia boa, os olhos já vem brilhando e ele fala exclamado, com aquela boca cheia de dentes lindos à mostra: Paiê!!!! Agora, se ele vem com aqueles olhos desconfiados, se esgueirando feito um ser da noite pelos móveis e com a voz murcha e me fala: Pai. O coração já se prepara: Fez merda! 



A mãe deles, às vezes, também me chama de pai, nessas horas, geralmente, ou é para pedir alguma coisa, ou é para dar notícia ruim, ou estive calado, sentado, à mercê dos pensamentos dela, que me sobrevoam, me rodeiam e me espionam se perguntando: Que merda ele vai fazer agora? Já está com cara de que vai pedir desculpas antecipadas! Agora, se ela já chega com passos firmes, passa como uma flecha para o outro cômodo da casa e de lá grita: Paulinho Freitas! Hum! Começa a inventar mil desculpas, uma para cada merda que você nem sabe se fez, mas a culpa já é sua. Essa é a voz do meu pensamento, porque meu espírito já saiu do corpo para não pegar a rebarba. 


Os livros também falam, uivam, gargalham, brincam. Fico imaginando, quando a noite cai e as pessoas vão dormir, os livros, uns contando suas histórias para os outros.  


Hoje as vozes estão fortes na minha cabeça, não sei se é a loucura de pensar mil coisas ao mesmo tempo, como todos os que escrevem fazem, ou se realmente está acontecendo. Comecei ouvindo a voz de  Perpétua saindo de um livro de Jorge Amado: Tiêta sua desavergonhada! Depois, ouvi a voz de  Chicó , pedindo o socorro divino após mais uma de suas trapalhadas com seu eterno parceiro João Grilo: Valha-me Deus!


Dos escritos de Dias Gomes me vem Nezinho do Jegue: Odorico morreu!!!!!! Lá pelas bandas de Ilhéus, correndo pela cidade feito um louco, um homem saído de outro livro de Jorge Amado grita desesperado: Coronel Ramiro Bastos Morreu!  


Sacudo a cabeça e penso: Hoje elas estão deprimidas, só notícia ruim. Gargalho de minha loucura, livro falando, faça-me um favor! Almoço e vou tirar aquele cochilo da tarde. Não sei se já dormia, se estava acordado ou se era um pouco dos dois, sei que de repente, de todos os lados, vozes de todos os livros do mundo, se unem às vozes dos livros de autores gonçalenses e me gritam em coro, numa tristeza que faz o dia virar noite, o sol virar chuva e cada sorriso virar lágrima e essas lágrimas vão inundando tudo, um dilúvio cultural, arrasando com as esperanças: _ A Livraria Ler e Arte Fechou! Se eu estiver dormindo não me acordem, se eu estiver acordado, me façam dormir. Não quero ouvir mais nada! 


Nos siga no BlueSky AQUI.

Entre no nosso grupo de WhatsApp AQUI.

Entre no nosso grupo do Telegram AQUI.


Ajude a fortalecer nosso jornalismo independente contribuindo com a campanha 'Sou Daki e Apoio' de financiamento coletivo do Jornal Daki. Clique AQUI e contribua.


Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.


POLÍTICA

KOTIDIANO

CULTURA

TENDÊNCIAS
& DEBATES

telegram cor.png
bottom of page