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Um escritor é feito de livros que o livraram - por Sammis Reachers


Capitães de Areia - O filme (2011)/Foto: Reprodução
Capitães de Areia - O filme (2011)/Foto: Reprodução

Não é lá muito simples, para um sujeito de livros, falar de quais deles o influenciaram. Muitas vezes nem foram os melhores em termos literários, mas simplesmente um livro certo num lugar e tempo (numa idade) certos.


Encontros ou escaramuças, desencantos e, permita-me o termo, hiperencantos vários...

A crônica precisa prosseguir, e o tema, embora difícil, tem pano para muitas mangas. Apanhemos, pois, nossa trouxa e aventuremo-nos como em A Ilha de Tesouro, do mestre iniciático meu e dos meninos de cinco continentes, Robert Luis Stevenson.


Sobreviventes do naufrágio do navio pirata, aportemos naquela costa fria, a inglesa, e tomemos contato com os extremos perturbadores do amor, narrados por uma das irmãs Brönte n’O Morro dos Ventos Uivantes, pesadelo do qual o menino escapou, não sem dolo – apenas para, tempos depois, cair no pesadelo de uma outra inglesa. Mas, não nos apressemos, amigo leitor; temos todo o domingo pela frente.


Um ou dois anos depois, já na cidade grande, Mario Puzo e seu O Poderoso Chefão, chão dos sebos e lugar-comum de seu gênero, introduziu de facto o garoto no universo romanesco, mesmo que de linearidades, levando-o a compreender a prosa como o encontro de saídas, contra a poesia como o encontro de imagens – percepção basilar que cimentaria as fundações do futuro operário da palavra gonçalense.



A descoberta de Borges (Ficções) certamente foi perturbadora: a Literatura poderia ser então elevada à coisa mais magnífica na Terra, pelas mãos logo de um cego argentino, um falso inglês? Os temas, o mistério, o rigor narrativo, o realismo fantástico, as toneladas não arbitrárias de referências à toda a cultura/história humana, realmente tiveram um poder de ritual iniciático: Era aquilo o que eu deveria fazer, era ali que eu queria estar para sempre.

Roteiro para um passeio ao inferno, da inglesa Doris Lessing (posteriormente laureada com o Nobel, o mesmo que negaram a Borges), mostrou-me que a literatura poderia ir além, atravessar sem medo o absurdo, o pesadelo e a hiperfragmentariedade - não havia limites, e ela o provara.


Lágrimas simplórias, sim, em Capitães da Areia, de Jorge Amado, mas fundadoras de engajamento, pois como Cristo, a literatura precisa estar do lado dos despedaçados – única maneira de não se extinguir no próprio espetáculo de futilidades que ela tanto aprecia ser.

O evento ou universo-Pessoa, a heteronímia plena e pânica, poesia máxima de nossa língua opulenta, outro abismar-me nas muitas idades e encontros.


Na primeira adolescência, Zaratustra de Nietzsche, praticamente incompreensível, mas que modulou a voz do poeta nascente.


Na mesma idade-tiroteio que é a adolescência, os Campos (as matas, o Augusto e o Haroldo), Pignatari, o primeiro e o último Gullar: O Concretismo e suas mirabolantes ramificações malabares.


Ao fim do ciclo, no ano primeiro do Ensino Médio, garoto estudando à noite entre adultos, um conto de Ignácio de Loyola Brandão, fulcrado da aleatoriedade de um livro didático, decidiu a partida.


E sabe lá Deus quantos tomos mais, de tacanha ou sobeja paginação. Eu prossegui, homem no que é humano, mesmerizado e sem fixar-me na memorização, apenas fruindo a fruição re/des/constri/tu/tora que a Literatura é, desde aquela primeira, sobre uma caçada ou um combate, narrada pelo ancestral – ainda manchado de sangue ou de sonho – à beira duma fogueira.


São listagens sempre temerárias, amplas ou modestas demais, injustiças sempre cometidas. Talvez aquele livro principal não tenha deixado recordação alguma e, surdo, ainda repercuta aqui, e em tudo o mais que eu escreva. Quem saberá? Não há limite paras o fazer livros, assevera o escritor bíblico do Eclesiastes; logo, não há limite para quantos livros ler. Cabe a cada leitor, regular ou esporádico, definir o quanto irá viajar neste mais barato e encantador dos veículos já engendrados pelo gênio humano.


Como consegui noutra oportunidade sintetizar, espero que com algum sucesso, o livro é uma ferramenta a um tempo prática e mítica: Porta para os mundos possíveis, portal para os impossíveis.


E você, amigo leitor: Quais são seus livros fundadores?

 

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Sammis Reachers é poeta, escritor e editor, autor de dez livros de poesia e três de contos/crônicas, organizador de mais de quarenta antologias e professor de Geografia no tempo que lhe resta – ou vice-versa.

Acaba de lançar um livrinho de bolso, Sabenças & Sentenças da Missão: Frases e provocações missionais. O autor e sua obra estão quase todos aqui: https://linktr.ee/sreachers




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