Tinha uma placa no meio do caminho
Por Lucas Fortunato
Em 1981 o artista estadunidense Richard Serra atravessou uma chapa metálica gigante no meio da Federal Plaza em Nova Iorque, obrigando os cidadãos que desejassem simplesmente atravessar o espaço público a dar uma volta muito maior para contornar o novo obstáculo que invadiu o local. Aparentemente uma tralha gigantesca sem sentido ou motivo que simplesmente te obrigava a dar mais passos a fim de poder chegar a seu outro lado.
Incrivelmente, para os descontentes esse “transtorno” se estendeu por anos e a obra perdurou até o final da década, somente sendo removida em 1989. Outro fato curioso é que foi a própria administradora de serviços gerais que encomendou a obra no final dos anos 1970 a responsável pela extração da placa de aço. O artefato foi considerado hostil na sua relação com o espaço, interferindo opressivamente na vida dos transeuntes.
Apesar das possibilidades de realocar o trabalho, diante de sua repercussão, Serra negou veementemente esta possibilidade, afirmando que a obra em si já estava destruída. Isso porque, falamos aqui do que em Arte se chama site specific.
Os artistas contemporâneos, muito influenciados, primeiro, por Duchamp, os ready-mades e o Dadaísmo, dedicaram-se a questionar valores antes estabelecidos da própria Arte e, entre estes, principalmente o do espaço. Era comum, como ainda o é, que determinadas instituições e o poder simbólico por trás de suas locações, influenciassem a definição e os valores artísticos, tais como museus e galerias. Após a segunda guerra, essa lógica foi repensada e a “fuga” desses espaços pode ser notada em expressões da Land Art, das Instalações e, no âmbito dessa última, o site specific.
A definição do termo aplica-se às obras ou manifestações artísticas em que a escolha do espaço, do local de suporte, precede a própria realização da obra. Assim, esta é pensada especificamente para aquele determinado lugar. Daí o nome. A valoração e o conceito dessa expressão não estão, portanto, no objeto ou sua exposição em si, mas na relação pré-estabelecida entre este e o território que lhe serve de base.
Por isso Richard Serra afirmou, com razão, que a “obra” já estava destruída no momento em que foi desassociada do local para o qual foi pensada. É claro que outros obstáculos poderiam ser inseridos em quaisquer outros lugares, mas as situações, as pessoas e o cenário observados pelo artista, que suscitaram a sua ideia, foram justamente aqueles.
Em suma, o seu objetivo era provocar as pessoas que transitavam pela praça, interromper uma simples caminhada desatenta e rotineira pelo local e substituí-la por um questionamento sobre sua a própria relação entre as pessoas e o espaço. Quantas não são as paisagens, ruas e construções pelas quais atravessamos todos os dias, quase sempre com pressa, quase sempre certos de uma urgência cuja explicação não nos questionamos com tanta certeza?
Na rotina e no cotidiano nos acomodamos e assim somos anestesiados quanto àquilo que poderia tocar nossos sentidos. Por vezes, quando a Arte chega, desacomoda. Incomoda. Ou seja, aqui o objetivo foi realmente cumprido.
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Lucas Fortunato é professor de Arte, pesquisador no campo do Cinema-Educação.