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Sonhar é preciso

Foto do escritor: Jornal DakiJornal Daki

SÃO GONÇALO DE AFETOS


Por Paulinho Freitas

Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

Apaixonaram-se ainda crianças, na escola estadual. Ela vinha cheia de sonhos, morava na zona sul, mas o pai se perdeu gastando mais do que devia, perdeu o bom emprego e pela idade não conseguia um que lhe proporcionasse o mesmo salário. Estava ultrapassado e a mão de obra que chegava ao mercado, ávida por fazer carreira, não poupava ninguém. Quem estivesse na frente ela passava por cima. Assim, o pai dela se viu obrigado a baixar o nível de vida da família, mudando para a periferia. Todos tiveram que se adequar a nova realidade.  O sonho não conhece nível social, está sempre no alto, no topo da mais alta montanha do pensamento. 


Ele nasceu na comunidade. Não gostava de estudar e seu sonho era um dia assumir o posto de “chefe” naquela localidade. Era cobiçado pela maioria das meninas, mas seu coração só batia por ela. Foram assim crescendo, apaixonados e jurando amor eterno. Ele enveredou de vez pelo torto caminho e a medida que ia crescendo na hierarquia do crime, ia também adquirindo os hábitos e trejeitos daquele submundo. A fez deixar os estudos e não a deixava sair de casa. A vida dela era esperar sua chegada, às vezes tarde da noite e só por uns poucos minutos. Não podia dar bobeira, vivia se escondendo. 


Um dia conseguiu o tão sonhado poder. Comprou uma casa na comunidade e a levou para morar (?) com ele. Aparecia quando dava. Ela sofria, chorava, queria se desvencilhar dele, o amor não resistia àquela vida. Mas nada podia fazer. Era vigiada dia e noite e até para ir à casa dos pais era escoltada pelos “seguranças”. Engravidou uma, duas vezes e quando as crianças já estavam com cinco para seis anos, numa batida policial ele foi brutalmente assassinado.  



No mundo do crime não existe herança e nem pensão. Voltou para a casa dos pais, agora com mais duas bocas. Conseguiu emprego numa mercearia e trabalhava quase que de domingo a domingo sem descanso, o que a mantinha viva eram os filhos e o sonho de conseguir dar a volta por cima, retomar os estudos, formar-se e sair daquele lugar para que as crianças não tivessem o mesmo destino que ela. 


A mão que escreve o destino não alivia ninguém. Quando é para fazer sofrer, ela capricha. Não demorou muito e um novo amor apareceu. Cheio de promessas de uma vida de rainha, com respeito e cumplicidade. Ele também a levou para casa, mas assim que uma nova e inesperada gravidez apareceu aquele amor se tornou uma grande indiferença, parecia que ela tinha adquirido uma doença contagiosa. 


Com a morte dos pais ocorrida na pandemia ela ficou sem lugar para voltar. Agora eram ela e os três filhos morando de favor no mesmo quintal dos pais dele, sem nenhuma perspectiva. 


No pouco tempo que tem no horário de almoço na mercearia ela aproveita para fazer simulados, pretende fazer a prova do Enem no final do ano, se sobrar um dinheirinho para pagar as taxas, entrar de cabeça num concurso público, com um salário melhor para dar um futuro melhor para os filhos. A noite ela quase não dorme, mas sonha. Durante o dia ela quase não sonha, mas está determinada a realizar. Que Deus a ajude. 

 

Obs: Qualquer semelhança com fatos reais, é mera coincidência. 


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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.

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