Respeite que serás também - por Paulinho Freitas
SÃO GONÇALO DE AFETOS
Em São Gonçalo temos um bairro ainda com ares de sossego e calmaria. Lá conheci “Miquita”, arengueiro, beberrão com todos os sentimentos ruins que se possa imaginar dentro daquele amargo coração. Como Deus escolhe eu não sei, só sei que numa noite de domingo, depois de beber toda a cachaça que seu corpanzil pudesse suportar, Miquita emborca o copo e com a língua enrolada pela embriaguez sentenciou para si: _ A partir de hoje nunca mais eu bebo, nunca mais eu fumo, nunca mais eu brigo, nunca mais Miquita. A partir de hoje nasce Flávio, homem de Deus e das orações, discípulo fiel do altíssimo!
Cambaleante e com o som da gargalhada dos amigos de bar nos ouvidos Miquita pegou o rumo de casa.
Por incrível que pareça, daquele dia em diante Miquita, já renascido Flávio passava longe do bar. Era comum vê-lo passar vestido num terno engomado e com a bíblia nas mãos. Ninguém entendia nada.
Numa tarde-noite, um carro estaciona perto de uma árvore e seus ocupantes depositam ali uma oferenda, acendem suas velas, cantam e batem palmas por alguns instantes, entram no carro e vão embora. Do bar, três homens saem para chutar a oferenda, mostrando suas masculinidades, bravura e coragem.
Eis que passa neste momento o agora evangélico Flávio e impede que os homens vandalizem a oferenda. “Cada um com sua fé“ ele dizia. Na mesma hora virou vítima da provocação dos ex-parceiros de copo, que rodeavam Flávio e um por vez cutucava suas costelas fazendo uma grande algazarra:
_ Crente que gosta de macumba! Nunca vi isso! Grita um. O outro começou a puxá-lo pela gravata para dentro do bar enquanto o terceiro trazia um copo de aguardente para forçá-lo a beber.
Flávio abraçava a bíblia e rezava: _ Senhor, perdoai! Dai-me sua luz e força para resistir na tua fé.
Quanto mais ele orava, mais os homens gargalhavam e apesar de já meio tontos pela bebida conseguiram arrastar Flávio para o bar.
Neste Momento, na rua principal acontece uma perseguição policial, um carro em alta velocidade entra pela rua, perde a direção e bate na árvore onde estava a oferenda, os ocupantes do carro saem atirando contra os policiais, que revidam para se defenderem, todos no bar deitam no chão, Flávio ajoelha, abraça a bíblia e com a cabeça baixa ora e pede proteção para si e para os demais.
Quando o tiroteio chega ao fim os meliantes estão mortos na calçada do bar, Flávio levanta a cabeça e vê os três corpos de seus agressores, um na sua frente e os outros dois um de cada lado. Flávio se toca para ver se está ferido e apesar dos joelhos de sua calça estarem sujos por estarem no chão nem um ferimento, nem um arranhão, nem estilhaços, nem nada tocou ou maculou seu corpo.
De dentro do bar sai um homem com uma garrafa de bebida nas mãos, toma um gole, se aproxima de Flávio, olha firme nos seus olhos e diz: _ Respeito é bom e eu gosto!
Atravessou a rua, pôs a garrafa no chão, perto da oferenda, virou-se, fez uma reverência para Flávio e desapareceu por entre as folhagens. As pessoas presentes nada viram, cercaram Flávio que parecia paralisado, sopravam seu rosto, molhavam com água gelada e chamavam seu nome.
Aos poucos Flávio foi conseguindo tirar os olhos das árvores. Sem dizer palavra foi caminhando em direção a igreja, orou muito, louvou e agradeceu a Deus por estar vivo.
Quando voltou aquela cena de guerra já havia sido desfeita, poucos curiosos ainda estavam por ali. Flávio passou calado deu uma meio parada perto da oferenda, beijou sua bíblia e seguiu em frente.
Era noite de quinta feira. Dia do caçador.
Okê, Okê, Arô! Arolé!
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.