O racismo que nunca sofri, por Mário Lima Jr.
Nasci branco, para o padrão brasileiro, em 1982. Brinquei com crianças negras e brancas na infância em São Gonçalo. A gente perambulava, às vezes tocava uma campainha, corria, pegava um jamelão e depois jogava bola no campinho de várzea. Nunca nenhum adulto me chamou gritando “Ei, brancão, vem aqui!”, pra pedir um favor ou me repreender. Vi acontecer com diversos colegas negros. Aqueles de tom de pele mais escuro eram cartas marcadas que recebiam ainda mais ódio. “Porra, negão, só faz merda, hein?”, os moleques mais velhos, brancos, debochavam. Sempre senti que era errado e jamais levantei a voz em defesa dos meus amigos negros.
Continuo brincando com crianças em São Gonçalo e o racismo ainda existe. Quando um menino negro aparece, é o “negão” das conversas. Pra pedir a bola numa partida de futebol, os outros garotos falam “Toca, negão!”. O grupo só se preocupa em perguntar o nome das crianças que, de alguma forma, aparentam superioridade econômica.
O apelido de um dos meus colegas de infância negros era “Dingo”, abreviação de mendigo. Quando a gente frequentava as festinhas de bairro, era comum Dingo calçar um tênis velho, vestir uma bermuda desbotada e uma camisa furada. Dingo chegava e era uma zoação danada, zombaria total. Brancos e “morenos claros”, felizes por não serem chamados de “negão”, apontavam pra Dingo e gargalhavam. Ele se acostumou e sorria da situação. Sorria fingido, com metade da boca meio caída, deprimida. Racismo só tem graça de verdade pro agressor. A personalidade de Dingo se desenvolveu acumulando sorrisos falsos por ser vítima de racismo. Ele se aproximava pra brincar já com o sorriso caído na boca, esperando o primeiro ataque. Décadas depois Dingo foi assassinado. Pobreza e morte violenta são crimes contra a população negra bem conhecidos.
O tempo passou e o racismo se manteve por perto, mas não contra mim, de outras formas. Sozinho, nunca fui parado pela polícia. Nenhum policial sequer me olhou. Peguei ônibus todos os dias por 12 anos para ir trabalhar e não sei o que é ter a mochila revistada, embora tenha presenciado algumas batidas policiais. Os parados e revistados foram os negros ao meu redor, tão inocentes quanto eu, suspeitos pela cor da pele.
Na curtição à noite, de carro, com amigos brancos por São Gonçalo, Niterói e Rio de Janeiro fomos parados apenas uma vez, na RJ-104. Ninguém saiu do veículo. O policial fez algumas perguntas, com absoluta educação, respondemos e nos despedimos. Conduta policial exemplar. Não é assim que a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro aborda negros. Nunca foi. Em São Gonçalo, a polícia invade casa de preto atirando e mata adolescentes brincando com os primos. Em Belford Roxo, a polícia para jovens negros de moto a tiros. Com as vítimas caídas no chão, se arrastando, a polícia chuta a cabeça delas com o coturno. Então as coloca na viatura, tortura e mata. Nas favelas do estado inteiro, a polícia dá “boa noite” a jovens negros junto com um tapa na cara. Ódio assassino que aprendem com seus pares dentro da própria instituição.
Racismo que vemos nas ruas, na televisão e na internet todos os dias, não é nada excepcional. Aliás, trabalhar no Centro, na zona sul da capital e na Barra da Tijuca me mostrou que o racismo sai das ruas e invade os prédios comerciais de alto nível do Rio de Janeiro. Porteiros negros são comuns nesses locais. O doutor que passa pela portaria quase nunca responde ao “bom dia” que recebe. O doutor nem olha pro lado, como se o pescoço dele estivesse congelado e quebrasse com o menor movimento. Mas, quando entra no elevador, o doutor abre a boca e mostra os dentes para os amigos do escritório.
Eu diria aos porteiros negros do Brasil e a Dingo, onde quer que ele esteja, que sinto muito, que tenho vergonha do racismo nacional, mas esses sentimentos mudariam pouco o país. Lembrei, assistindo o documentário AmarElo, do Emicida no Netflix, que o ideal é reconhecimento. Reconhecer que vivemos em um país feito por negros, mantido por negros, de alma e cultura negra. Agradecendo a gente começa a entender o que é ser brasileiro e vence o racismo.
Mário Lima Jr. é escritor.