O bom e o velhinho
Por D.Freitas
Nasci velho, isso foi dito por meus pais, meus primos mais velhos, meus tios e todos que me conheceram quando criança. Sempre fui meio ranzinza, sempre gostei de ver o jornal da manhã e nunca acreditei muito em fábulas. Sendo assim, nunca acreditei no papai Noel, mas sempre gostei do natal. Gosto do fato de que todo mundo se perdoa por um tempo, gosto das piadas do tio do pavê e adoro as comidas.
Agora adulto (na mentalidade e na idade), estou encarregado de ajudar na ceia com as sobremesas e acordo bem cedo para comprar os materiais para o preparo, pois detesto fila e multidões. Tomo o centro de São Gonçalo cedo o suficiente para vislumbrar as lojas abrindo, algumas já com clientes na porta, outras usando estratégias para atrair os que ainda não chegaram, como o som natalino, decorações e animadores vestidos de Papai Noel.
Na loja onde vou comprar meu material encontro na porta o bom velhinho vestido ainda pela metade. Ele tem semelhança física com a nossa idealização da figura natalina, mas ainda falta vestir o seu jaquetão vermelho característico, a ser coberta por ele, uma camisa de escola de samba cobre o peito do bom velhinho.
-Alô Porto da Pedra!
Brinco ao reconhecer o tigre estampado. O senhorzinho ri e me saúda. Enquanto faço as compras ele pergunta sobre o meu pai, provavelmente ele me conhece pois sou bem parecido com meu velho, mas pode estar me confundindo com meu irmão, pois também pareço com ele. No entanto, não reconheço, mas também não o destrato. Isso acontece constantemente na minha vida dada minha péssima memória e o excesso de popularidade dos meus pais.
Enquanto se veste caminha comigo e jogamos conversa fora. Falamos sobre a situação da escola e de como estava linda nos últimos anos. Reclamamos do roubo dos jurados e das grandes agremiações que não dão chance para que outras escolas possam brilhar na Sapucaí com seus esquemas políticos e afins... Mas é natal, e não Carnaval, então o interrompo.
-Desculpa te cortar, amigo, mas você é o primeiro papai Noel que eu conheço. Preciso te perguntar: o que fazem no resto do ano?
Ele gargalha.
-Sou papai Noel e só. A gente ganha bem, vive o resto do ano no samba, bebendo cerveja e viajando.
Possivelmente ele está zombando da minha cara, mas ensaio uma face de admiração e em seguida rio junto ao bom velhinho agora com suas vestes completas enquanto também termino minhas compras.
Dias se passam e aproveito aquele tempo de recesso entre natal e ano novo. Todo mundo aproveita o clima de festa e qualquer desculpa para sair de casa é válida. Levo minha afilhada para passear na orla iluminada de Maricá. Caminho com a pequena em meus ombros enquanto me perco nos meus pensamentos presos às tristes notícias dos últimos dias envolvendo o acidente na árvore de natal que estava sendo construída naquele lugar, que levou um jovem ao óbito e machucou outros trabalhadores.
A empresa responsável tem acidentes recentes em seu histórico e mesmo assim foi contratada pela prefeitura para esse trabalho de fim de ano. Mais uma vez, irresponsável, pôs em risco a vida de seus funcionários e transeuntes que apenas gostariam de viver o clima familiar, amistoso e feliz do fim de ano.
Sou puxado para fora desse pensamento negativo no qual me afoguei por poucos segundos pela voz da minha afilhada gritando nos meus ombros.
-Dindo, Dindo! Ali!
Um daqueles personagens vivos dos desenhos acena para nós da calçada chamando a atenção da pequena. Eles sabem que precisam que os pequenos os olhem para convencer os adultos de tirarem uma foto com eles. Eu, inocente, caminhei até lá para realizar esse pedido, achando se tratar de algum artista contratado pela prefeitura ou algum artista independente que cobraria alguma pequena ajuda de custo. Coloquei a pequena ao seu lado, preparei meu celular e me afastei para tirar a foto. Antes que eu pudesse clicar, lembrei da minha esposa que sempre me diz: Amor, pergunte o preço das coisas antes de falar que quer.
Sábia é a mulher que edifica o lar.
-Amigão, quanto custa a foto contigo?
A criatura azul felpuda de algum desenho que eu não faço ideia qual seja balbucia algo com uma voz forçadamente fina que não compreendo muito bem e dou de ombros.
-Tá baratinho dindo! É só pra ajudar o moço!- Argumenta minha afilhada.
O ser peludo levanta o polegar confirmando ser apenas isso.
Ela sorri e ele está sorrindo permanente com aquela máscara levemente assustadora. Faço a fotografia. Ela aperta a mão dele e vem correndo ver se ficou boa. Sorri e saltita, suponho que tenha ficado do seu agrado. O animador se aproxima lentamente e abafado pela espuma da sua máscara diz um valor que juro não compreender. Em seguida, compreendo mas preferia não ter entendido. Tento amolecer o coração dele dizendo que é natal, ele retruca dizendo que é por isso que ele precisa fazer dinheiro, eu digo que ele disse que seria baratinho, ele diz que é o mais barato da região.
Pago a contragosto, ele agradece e quase saltita como minha afilhada fez há pouco. Ao se despedir deixa escapar uma risada característica, uma risada que não pertencia àquele personagem. A risada que ouvi há alguns dias enquanto fazia compra:
-Hohoho
Rosno como um cão, mas logo em seguida me escapa uma risada.
Penso em como eu vou explicar em casa que gastei esse tanto de dinheiro em uma foto.
Penso que eu deveria continuar sem acreditar no papai Noel.
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Davi Freitas (D.Freitas) nasceu em São Gonçalo, cria da cultura gonçalense, desde sempre conviveu com músicos, poetas e escritores. autodidata, aprendeu violão e bateria sozinho e junto com o irmão Lucas Freitas fez algumas apresentações até ter, por motivos profissionais, que mudar de estado. Como escritor, participou, pela Editora Apologia Brasil da Antologia em Tempos Pandêmicos e inicia agora sua trajetória no mundo das crônicas e contos.