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No ônibus, esperando a água baixar - por Mário Lima Jr.

Foto do escritor: Jornal DakiJornal Daki

Foto: Reprodução Internet
Foto: Reprodução Internet

Olhei pela janela e vi o trânsito parado. A fila de veículos ocupava toda a Estrada dos Menezes porque o centro de Alcântara estava alagado, os motoristas buscavam outro caminho para chegar em casa. Lotado, um ônibus pro Jockey travou bem embaixo da minha janela, já eram quase 11 horas da noite.


Dentro do ônibus ninguém se mexia. Cada passageiro tinha virado a cabeça prum lado e permanecido assim, naquela posição estranha: olhando pra fora sem ver nada além do próprio interior. Tão imóveis quanto os veículos ao longo da estrada.



A expressão idêntica dos passageiros dizia que dentro deles o sentimento era o mesmo. Além de tristeza, revolta, cansaço e medo do que encontrariam quando chegassem em casa. Todos os móveis, eletrodomésticos e talvez até seus filhos submersos, como encontrou o escritor Erick Bernardes, morador do bairro Lindo Parque. Felizmente a família de Erick sobreviveu.


Resolvi focar num rosto, um homem com o queixo apoiado na mão direita. Só Deus sabe há quanto tempo ele estava no ônibus. Não é normal coletivo cheio tão tarde da noite, como na hora do rush, com estudantes e trabalhadores uniformizados. Pardo, cabelo baixinho, magro, barba por fazer e olhos brilhando muito, vi mesmo distante. Não sabia, mas o desespero também faz os olhos brilharem, acho que pela concentração de lágrimas que podem desabar a qualquer momento.



De pé, cansei de observar o homem. Nenhum veículo avançava e do Alcântara ao Jockey ainda havia um longo caminho com inúmeros pontos de alagamento. A mão dele em nenhum momento cansou. Esperei um pouco mais, numa espécie de desafio doentio da minha parte, e o homem não se mexia nem pra mudar levemente de posição. Esperando a água baixar, o ônibus inteiro continuava em estado de choque com o quanto São Gonçalo é vulnerável. E como sua fragilidade, meticulosamente planeja e construída, provoca sofrimento em pessoas inocentes, que nunca fizeram mal a ninguém e jamais foram citadas em comissões parlamentares de inquérito.


Bairros inteiros, como Neves, tradicionalmente alagam a cada chuva e continuarão alagando porque não há projeto para impedir a tragédia. Também só Deus pode informar a hora que os passageiros do Jockey, vindo lá do Fórum, chegaram em casa. Se abraçaram suas famílias antes de dormir ou se passaram a noite acordados com medo da água e da lama.

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Mário Lima é escritor.





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