Nada mudou - por Paulinho Freitas
SÃO GONÇALO DE AFETOS
Meu amigo de pele preta e alma tão preta como a cor de sua pele estava vendo televisão em seu santo lar, quando de repente, uma propaganda chamou sua atenção. Era de um carro com seis marchas, um designer lindo, carro exuberante e com um preço que cabia no seu bolso. Recém-aposentado e com um dinheirinho na poupança, guardado por muito tempo para este fim, ficou muito empolgado e feliz.
No dia seguinte, com a esposa e o neto, foi à concessionária para ver o carro e quem sabe, fechar negócio.
Lá chegando viu aquela belezura, na cor que ele queria, quase chorou de emoção. Depois, quase chorou de tristeza, pois nem um vendedor lhe deu a devida atenção, todos passavam por ele como se ele fosse invisível. Com o coração entristecido foi saindo da loja. Já quase na calçada, um rapaz vinha entrando com um lanche em uma das mãos e com a outra o segurou pelo braço perguntando:
_ Onde o Sr. Vai sem dar uma volta no seu carro novo?
E meu amigo respondeu:
_ Ninguém me deu atenção, aliás, nem bom dia me desejaram. Me senti muito mal ali.
O vendedor argumenta:
_ Lógico! O Sr é meu cliente e é tão importante para nossa empresa que tem um vendedor exclusivo: eu! E vamos voltando que eu vou lhe atender depois de tomarmos um cafezinho e seu neto tomar um refrigerante enquanto brinca no espaço kids da loja. Sei que a palavra final é dada sempre pela esposa e espero que ela goste do carro. Vamos entrando?
Depois de um mea culpa deste, entraram e conversaram bastante. O vendedor cobriu meu amigo de atenção, fizeram o teste drive e voltaram para a loja com meu amigo muito feliz. O vendedor então pergunta?
_ E aí meu patrão? Fechamos negócio?
Meu amigo em êxtase como uma criança que está prestes a ganhar um presente respondeu:
_ Sim. Vamos fechar.
E o vendedor também comemorando a venda:
_Ótimo, vou mostrar-lhe as condições de pagamento, o Sr pode pagar até em 120 meses.
Para espanto do vendedor e de todos os outros vendedores que prestavam atenção, achando que o colega estava perdendo tempo, meu amigo abriu a camisa e retirou o dinheiro enrolado em sua cintura, altivo e feliz:
_ Vou pagar à vista!
Trinta dias depois, uma cegonha com o carro novo, todo enfeitado de bolas coloridas chegava ao portão de meu amigo fazendo a alegria da casa, houve festa, churrasco, cerveja e roda de samba. O vendedor já ficou amigo da família e faria outras vendas para outros familiares do meu amigo.
Não passou uma semana e meu amigo foi parado numa blitz. O policial antes do cumprimento de praxe já foi ordenando:
_ Saia do carro, encoste as duas mãos na lataria, mantenha as pernas abertas e a boca fechada!
Fez a revista pessoal e investigou cada canto do carro. Só depois pegou os documentos para averiguar. Quando viu a besteira que fez ainda fez um pedido de desculpas pior que a abordagem:
_ um negão desses com um carro desses a gente desconfia.
E quase gargalhando ordenou ao meu amigo:
_ Pode ir cidadão. Foi mal.
Enquanto o policial se afastava a esposa do meu amigo o vendo quase aos prantos veio consolá-lo:
_ Paciência meu amor, as coisas vão mudar.
Meu amigo olhando pro céu exclama:
_Quando será minha filha? Quando será?
Obs: O policial era tão preto quanto meu amigo.
Obs: Meu amigo se despediu da vida, no auge da pandemia.
Obs: Esta semana mais um ato racista numa grande loja aconteceu.
Conclusão: NADA MUDOU!
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.