Meia cinco
Por D.Freitas
Meu velho nunca foi de dar atenção para datas festivas. Não por não ser uma pessoa animada, mas por ser festivo em excesso. Todo dia pra ele é uma data comemorativa. Todo dia é um dia para reunir a família e comemorar qualquer coisa.
Às vezes íamos à um trailer do bairro para comermos hambúrguer só para comemorar uma nota acima de nove que tirei. Às vezes ele compra algumas cordas de caranguejo apenas pra comemorar que o Vasco não perdeu... Qualquer motivo é motivo.
No entanto, dessa vez me surpreendi ao me deparar com seu excesso de felicidade no seu aniversário. Não lembro da última vez que ele tinha comemorado o próprio, ele sempre fazia surpresa e dobrava esforços para comemorar os nossos, mas nunca o próprio. Só dessa vez.
Em plena quinta-feira, nossa cadela recepcionou festivamente os meus tios por parte de mãe que sempre estavam por perto. Minha mãe, por sua vez, se uniu com suas irmãs na copa e na cozinha improvisando quitutes enquanto jogavam conversa fora e trocavam informações sobre a vida alheia. O velho tomava um banho de horas enquanto meu irmão afinava o violão e ensaiava uma ou outra música, porque tudo sempre acabava em roda de viola. Não demorou muito tempo e meus tios por parte de pai também chegaram para comemorar o aniversário do irmão mais velho, eles não vinham muito na casa dos meus pais, mas eram presentes à sua maneira. Como sempre comentaram como eu cresci, alguns falaram que engordei, outros que emagreci, mas todos diziam que eu era a cara do meu pai e que me pegaram no colo. Sempre ensaio meu melhor sorriso para essas situações não se tornarem constrangedoras.
Um tempo depois chegaram amigos do samba, o grupo da igreja que meu pai tocava quando jovem, a associação de moradores, um menino que meu pai conheceu em uma instituição para menores e juro ter visto até mesmo alguns integrantes de uma trupe de circo. Quando dei por mim a cadela já estava exausta de fazer festas para recepcionar os convidados, já existiam mais pessoas que espaço e meu pai ainda não havia terminado seu banho. Contudo, era engraçado como eu me sentia em casa com aquele caos controlado. A diferença abismal entre as pessoas que nunca se falariam normalmente na rua, ou tampouco se olhariam, caía naquele quintal.
Repentinamente um perfume pairou no ar. O cheiro que costumo dizer que é "cheiro de pai". Usamos o mesmo perfume, contudo é diferente quando sai da pele dele. Engraçado que todos pareciam ter esse mesmo senso de reconhecimento, pois todos viraram para o ver antes que ele chegasse na porta. Uns podiam dizer que era a sua energia apoteótica mesmo sem querer sem apoteótico. Outros podiam dizer que ouviam seus passos dados por seus pés tamanho quarenta e seis... Para mim era o cheiro. Ele abriu a porta e ganhou a multidão que se aglomerava naquele pequeno espaço. Cumprimentou um por um. Conversou por tempos em diversos pequenos grupos até se sentar. Nesse momento, como previsto, tudo acabou em roda de viola. Com aquelas cantigas que não consigo ouvir no rádio ou em aplicativos pois só fazem sentido pra mim na voz dele.
Ao meu lado, minha mãe acompanhou uma canção ou outra. Um trecho ou outro e se animou um pouco mais com suas músicas favoritas. Curiosamente, em um momento em que ela não estava tão entretida assim perguntei:
-Qual o motivo do meu pai comemorar o aniversário dele dessa vez?
Minha mãe gargalhou e explicou.
-Ele não tá comemorando exatamente o aniversário dele. Tá comemorando que pode andar de ônibus de graça.
Dividimos uma gargalhada sonora que sumia nos aplausos acalorados ao fim de uma canção de Zé Ramalho.
Pensei por alguns segundos que meu velho estava realmente mais velho e isso me cobriu com um pouco de pesar. Até cair no pensamento de que ele, ao contrário do resto do mundo, tem apenas melhorado com o tempo. Para nós, o tempo é uma fábrica de monstros. Para ele, o tempo é um construtor de momentos e ninguém tem dúvida de que ele sabe colecioná-los.
D.Freitas
Meia cinco
Ao meu pai,
Meu velho e meu escritor favorito,
Paulinho Freitas.
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Davi Freitas nasceu em São Gonçalo, cria da cultura gonçalense, desde sempre conviveu com músicos, poetas e escritores. autodidata, aprendeu violão e bateria sozinho e junto com o irmão Lucas Freitas fez algumas apresentações até ter, por motivos profissionais, que mudar de estado. Como escritor, participou, pela Editora Apologia Brasil da Antologia em Tempos Pandêmicos e inicia agora sua trajetória no mundo das crônicas e contos.