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Manhãs que poderiam ser recorrentes se não fossemos tão orgulhosos

Por D.Freitas

Foto: Reprodução
Foto: Reprodução

Essa ressaca pós sono me faz lembrar do que me disse ontem depois de tudo : a gente não se encontra, a gente se atropela. 


Isso me tirou uma risada sincera, pois é algo exato e sincero. Saímos sempre machucados e graças aos deuses nem sempre é algo ruim. Nem sempre é sobre sentimentos ou mágoa. Normalmente não é. É sobre o sono perdido mesmo tendo que acordar extremamente cedo para trabalhar no dia seguinte, é sobre a força que usamos pra demonstrar todo desejo que corre por nossas veias quando nos encontramos, ou melhor, nos atropelamos. Às vezes sobram algumas manchas roxas pelo corpo, um ou outro arranhão, queimado e uma vez disseram que tinha até sangue na gola da minha camisa. Ainda bem que faço a barba todos os dias e essas desculpas calham.


Lhe deixo para trás ainda dormindo e ainda rindo pois realmente parece que foi atropelada. Tão espalhada na cama que não sei como eu estava cabendo ali. Lhe cubro pois sei como é frienta e sei que vai se cobrir mesmo com o abafado do quarto na terra que não faz frio e ao se cobrir vai acordar o suficiente para dar vontade de fazer xixi e nunca mais vai conseguir dormir de novo até a hora do trabalho (nunca mais normalmente dura uns dois minutos). 



É ritualístico o meu acordar, seguir ao banheiro, lavar o rosto, enxaguar a boca e mijar, mas sempre sinto como se tivesse me despedindo do seu sabor quando cuspo a água na pia. Isso não é nada romântico, mas creio que não sejamos tão românticos, pelo menos não de forma plástica. Talvez meu romance esteja atrelado ao acordar uns minutos mais cedo para te levar café na cama todos os dias em que estou aqui e o seu esteja atrelado à me ajudar toda noite à me acalmar quando penso que estou morrendo nos sonhos, e isso é algo frequente. Tenho um péssimo dormir, mas nesse cenário, com ela, unicamente nesse cenário, tenho um excelente acordar. Sempre canto fazendo qualquer coisa após acordar do seu lado. 


Já fui ameaçado algumas vezes por Deus amigos que diziam que me fariam coisas terríveis caso eu quebrasse esse coração. Mal sabem eles que o meu está nas mãos dela. Nessas manhãs, não só o coração. Por mais que eu tenha o dobro seu tamanho e peso, sinto que caibo na sua mão. Às vezes na boca. 


Me sinto culpado por sempre acabar meus pensamentos sobre nós dois em sexo. Talvez porque por mais que tenhamos começado sendo só isso, talvez hoje sejamos um pouco mais. 

Seu cão já não em morde mais  e ela me disse certa vez que ele sempre odeia todo mundo de forma democrática. Talvez eu tenha o comprado com um sachê ou umas frutinhas que ele adora, mas nessa democracia estou ganhando alguns votos positivos. Prova disso é a saudade que ele demonstra que sente de mim toda vez que saio e volto pela porta, por mais que eu só tenha ido do outro lado da rua nesta manhã para buscar pão.


-Cretino... - ouço sua voz sonolenta julgando o cão enquanto ele se derrete ao meu carinho. Levemente enciumada, ela se encosta no vão do corredor na do outro lado da sala. Está com tanto sono que mal percebeu que não está tão vestida quanto gostaria e ainda não mudou sua opinião quanto a não usar cortinas para deixar entrar a luz natural. 


Repreendido, o cão de volta para ela abanando o rabo com tanta força que até curva sua longa coluna. 


-Ela não resiste aos seus olhos caramelados e seu molejo, Don. - Digo ao cão.

Como se ele me entendesse, o salsicha gordo rola no chão mostrando sua barriga para receber carinho. Ela cede e bufa sorrindo enquanto se agacha para o acariciar. 

-Não mesmo. - concorda.


-Bom dia e os vizinhos tão vendo sua bunda.


Ela levanta corada, mesmo sem saber se realmente alguém já está acordado e bisbilhotando a vida alheia (provavelmente não), se oculta nas sombras do corredor sem janelas enquanto o cão se esgueira por trás dela correndo para a cama a fim de aproveitar o resto da manhã de soneca eterna proporcionada por sua nada fácil vida de cachorro. Me perco em meus pensamentos enquanto acompanho o andar dela seguindo o corredor atrás do cão até o quarto, ao avançar das portas e fachos de luz que me proporcionam uma visão momentânea de seu corpo, ora de forma clara, ora apenas uma silhueta.


-Ele não resiste ao meu caminhar, Don. - Brinca ela com a frase que disparei para o cão. 

Realmente não resisto, mas não respondi. Não com palavras. Não naquele momento.


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Davi Freitas (D.Freitas) nasceu em São Gonçalo, cria da cultura gonçalense, desde sempre conviveu com músicos, poetas e escritores. autodidata, aprendeu violão e bateria sozinho e junto com o irmão Lucas Freitas fez algumas apresentações até ter, por motivos profissionais, que mudar de estado. Como escritor, participou, pela Editora Apologia Brasil da Antologia em Tempos Pandêmicos e inicia agora sua trajetória no mundo das crônicas e contos. 



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