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Foto do escritorJornal Daki

Lembranças II - por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS

Reprodução Internet
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Passei alguns anos de minha vida sobrevivendo do ofício de cantar e tocar violão em bares de São Gonçalo do Amarantes. Não me considero bom no ofício, me acomodo melhor compondo ou escrevendo.


Conheço mestres memoráveis no assunto que até hoje encantam plateias: Sérgio Quental, Marlon Borges, Peixinho, Marcelo Bossa, Beto Lemos, Fábio Moraes, Luciene Alves, Débora Ojeda, Simone Santó, e mais um montão de gente boa que não tive o prazer de conhecer e mais um montão de gente que está iniciando e já fazendo bonito por aí. Além, é claro, dos mestres que já não estão conosco como Namor Junior (Jandilson), Aluçã e Jorge Soares, que encantavam a tudo e a todos.


Nessa época eu observava tudo o que acontecia dentro dos bares em que tocava, a gente que faz este tipo de trabalho tem um lugar privilegiado para ser observado e observar. Conheci certa vez um advogado de nome Davi e seu sonho de viver a vida toda ao lado de Sônia, uma linda mulher de olhos azuis como daqueles irmãos africanos, mas com a pele clara feito o leite e umas sardas no rosto que endoideciam nosso querido amigo Davi.


Sônia não dava a menor importância à presença dele, passava por ele como se passasse por um poste, ou pior, como se passasse por nada, nem o vento dele sentia. Davi chorava e se embebedava quase todas as noites por causa dela.



Das poucas vezes em que ele tomava coragem de chegar perto e falar bem pertinho de seu ouvido, a moça tremia as pernas, faltava-lhe o ar, e quando ela quase já ia desfalecendo para cair nos braços de Davi, alguma coisa a sacudia e a danada saía ventando de perto dele dizendo-lhe palavrões e desaforos totalmente impróprios de se escrever aqui.


Davi fazia de tudo para agradar a moça, quase todas as semanas chegava com um terno novo, bebia o que de mais caro havia no bar para impressionar e nada de receber um sorriso, um olhar...


Um belo dia Davi comprou um carro, um Fuscão daqueles Fafá de Belém, branco com rodas de talas largas e um potente som. Chegou ao bar buzinando todo feliz. Seu sorriso foi murchando ao ver Sônia, saindo do bar com um camarada grandão e entrar num Del Rey zero quilômetro olhando com desdém, quase gargalhando da cara de nosso querido Davi que em fúria saiu desembestado pela rua principal colidindo a mais de 100 km por hora num poste lá perto da Prefeitura Municipal de São Gonçalo do Amarantes.


Certa noite Davi reapareceu, puxava de uma perna e falava um pouco arrastado. Neste dia Sônia também apareceu e foi por educação que perguntou por sua saúde e até alisou sua cabeça. Davi não perdeu tempo e cochichou algo em seus ouvidos que a fez perder o chão, ela fingiu um desmaio para sair de perto dele antes que ouvisse seu corpo todo pedindo para que se entregasse de vez. Foi embora e até esqueceu a rosa que ganhara como prova daquele imenso, eterno, inesquecível amor.



Davi também sumiu. Dizem que depois desse dia Davi parou de beber e fumar, se dedicou ao escritório e tentou se reerguer até que as sequelas do acidente o levaram para outro plano. Pobre Davi... Dizem que Sônia se casou com aquele camarada grandão e sumiu da noite... E lá se vão mais de trinta anos...


Hoje fui cumprir minha rotina, passei no salão do Robertinho para saber das últimas novidades, fui ao mercado do pai do Bruno, que também se chama Roberto comprar um bom pedaço de barriga para fazer um torresmo e parei no bar do Serginho para a última prosa antes do retorno ao lar.


No fundo do bar uma turma bebia cerveja e contava seus causos, ouvi entre eles uma gargalhada familiar, daquelas que pode passar cem anos e você não vai esquecer. No meio da galera um cara com aquela pele branca como leite e com sardas, olhos azuis como só alguns de nossos irmãos africanos têm. Lembrei-me de Sônia na hora. Mas aquela gargalhada era do Davi.


Perguntei ao Serginho de onde eram aquelas pessoas e ele me disse que eram advogados e que acabaram de alugar uma sala no prédio ao lado do bar e estavam comemorando a inauguração do escritório que será na próxima segunda feira.


Na figura daquele rapaz vi nosso querido Davi novamente, no andar, no jeito de falar e naquela gargalhada que faz todo mundo rir também. Voltei no tempo e visitei aquela noite quando os dois saíram do bar.


O que aconteceu naquela noite? O que Davi teria dito a ela que a fez perder o chão, o juízo e o rumo? Nunca vamos saber. O que eu sei é que Davi não morreu, ao contrário, renasceu, é advogado e está muito feliz. A chuva lá fora está forte e ouvindo seu barulho batendo no chão e correndo feito um riacho, fecho os olhos e lacrimejo revendo histórias, causos e afins...


Estou feliz!

 

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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.


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