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Janela

Por D.Freitas

Ilustração: Rafael Taboo
Ilustração: Rafael Taboo

Sou um exímio coletor de momentos alheios. Muitos chamariam de "fofoqueiro", mas eu me defendo dizendo que apenas prefiro desperdiçar meu tempo acompanhando histórias reais do que vendo reality shows, novelas e séries na TV. Meu canto favorito da casa é a janela. Sempre, por lá, estou acompanhado do meu gato que está levemente acima do peso e me cansa segurá-lo toda vez que estamos olhando para a rua por tempo demais. Brinco dizendo que ele é o meu controle para que eu não perca as rédeas do tempo. Me impede que eu perca o tempo do arroz e acabe queimando, ou que eu esqueça de colocar o amaciante na roupa. Além de excelente companhia é um funcionário exemplar. Bartolomeu solta um miado estridente. Às vezes sinto que ele consegue me compreender e até falar comigo. No momento, ele está tentando chamar minha atenção e se conseguisse utilizar do seu indicador para apontar, estaria mostrando a janela do apartamento do outro lado da rua. Nosso canal favorito. Muitas pessoas gostam de ver o caos, discussões, segredos e afins... Nós, gostamos de ver justamente o oposto. Buscamos na janela crianças brincando na rua, o moço fortão passeando com seu cachorro salsicha enquanto cantarola e o casal do apê da frente. São dois jovens, que parecem recém-casados, mas se mudaram pra cá há alguns anos na mesma época que eu. Sempre estão fazendo algo juntos. Contas de casa, faxina geral, jogos de tabuleiro, cozinhando... Sempre juntos. Cada momento com uma playlist e uma vibe diferente. Ela parece estar só. Acende um cigarro assim que se apoia na janela. Não demora muito tempo e se vira ouvindo alguém a chamar. Ri exageradamente algumas vezes e oferece o cigarro. A mão do rapaz se estica para fora da penumbra e toma o fumo. Ela sopra a fumaça com um sorriso de canto de boca e o chama com os dedos. Ele avança para fora da penumbra e eu cubro os olhos do Bartolomeu pois sabia que estava pra acontecer algo impróprio. Encaro a rua que começa a mudar de cor com o pôr do Sol. Sinto uma súbita vontade de fumar. 


Há tempos deixei de colocar cigarros em minha rotina, mas vez ou outra enrolo um tabaco orgânico só para matar a saudade do hábito - às vezes não chego nem acender- e no tempo em que busco a seda e o tabaco, Bartolomeu anda impaciente de um lado para o outro na janela, apoiando seu grande corpo na grade. Ignoro, pois provavelmente ele está em polvorosa com a quantidade de coisas que acontecem nesse horário. O fim do expediente das fábricas da Zona Franca anuncia um trânsito infernal que coincide com a volta da escola. Todo movimento daquele bairro explode às cinco e pouca. Enrolo e desfruto desse momento, perco alguns minutos simultaneamente observando o prédio tomando um tom sépia. Isso me traz uma espécie de conforto. O gato se aninha em meu colo assim que coloco o cigarro na boca antes que eu pudesse acender. Ocupo minhas mãos com seu peso e com um carinho dos dedos em sua cabeça peluda. Ouço seu ronronar e ao fundo ouço alguns tapas que me chamam atenção. Não consigo evitar e volto meu olhar para a janela do outro lado da rua. Já é quase noite, mal posso ver algo além das sombras se encontrando naquela parcial escuridão. Não era uma agressão. Nenhum dos dois parecia irritado. Me sinto corar e mudo mais uma vez meu foco para o trânsito e o céu vespertino. Demorou um tempo para perder para minha curiosidade e olhar novamente para a janela onde não se encontra mais nada visível por alguns minutos, até um gato branco e magrelo pular pela janela afora entre as grades. Bartolomeu me encara ao ver essa cena. Sorrio. 


-Você não conseguiria, mesmo se morássemos no térreo. 


Como se entendesse essa ofensa, mia mais uma vez e se debate até saltar do meu colo caindo de forma sutil demais para seu peso, como bom felino que é. Gargalho. Sem a trava de segurança de pelos, busco o isqueiro no parapeito e acendo o cigarro. Sopro a fumaça quando vejo um homem sair pela porta do prédio da frente. Não era o jovem que comumente compunha o casal. Talvez não estivessem mais juntos. Talvez eu tenha perdido um ou outro episódio. 


Confiante de que conseguiria replicar a façanha do gato branco há alguns minutos, Bartolomeu salta na grade que se chacoalha com o impacto. Reclama em mais um som que não é bem um miado. 


-Vamos passear, Bartô. – Ofereço o prêmio de consolação.


Ganhamos a rua através da porta para variar o costume de ver a vida passar pela janela. 


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Davi Freitas nasceu em São Gonçalo, cria da cultura gonçalense, desde sempre conviveu com músicos, poetas e escritores. autodidata, aprendeu violão e bateria sozinho e junto com o irmão Lucas Freitas fez algumas apresentações até ter, por motivos profissionais, que mudar de estado. Como escritor, participou, pela Editora Apologia Brasil da Antologia em Tempos Pandêmicos e inicia agora sua trajetória no mundo das crônicas e contos. 


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