George Bem
SÃO GONÇALO DE AFETOS
Por Paulinho Freitas
Quase não saio de casa. Quando saio, vejo novos moradores de rua junto a outros já estabelecidos. Cada dia um movimento diferente, um dia aparece um, outro dia some outro. Ainda não consegui entender esses movimentos.
Ali, quase na frente da Câmara de Vereadores, na porta de uma loja fechada que já foi de um tudo, mercado, farmácia, agência bancária etc., agora serve de abrigo noturno a esses nossos irmãos que só não tem opção de ir ou vir para casa, a rua se transformou em lar por vários motivos. Ali via sempre o George, nome que eu mesmo inventei para ele pelas suas características europeias, olhos azuis pela manhã e verdes quando confrontados com o belo por do sol gonçalense.
Os cabelos esbranquiçados, mesmo sem a devida higiene, escorrem pelo ombro. A altura e a postura também lembram muito os elegantes cavalheiros, frequentadores de cafés e pubs londrinos. Coloquei o nome de George por isso. Adicionei o “Bem” porque ele estava sempre cantando: “Ela já não gosta mais de mim...” George Bem dormia todas as noites ali, na porta daquela loja, acompanhado de outros moradores de rua. O que sei sobre ele é que morava na cidade do Rio de Janeiro, tinha família e era um comerciante bem sucedido.
Possuía uma rede de padarias do Centro a Zona Sul, passando pela Tijuca. Depois de uma vida inteira entregue ao trabalho, filhos criados e formados, cheio de disposição e querendo crescer mais, recebeu um banho de água fria ao chegar mais cedo em casa e flagrar sua esposa, na sua cama, com seu sócio e melhor amigo. George não falou nada, não gritou, não chorou, não bateu, não xingou, nem pensou em vingança. Apenas tirou a carteira do bolso, jogou em cima do casal, tirou o paletó e os sapatos, calçou uma velha sandália franciscana e saiu a pé, sem destino, vindo parar aqui em São Gonçalo.
Como todos os moradores de rua da cidade, vive dependendo da caridade alheia para se alimentar, sofrendo assédio moral de traficantes e até de outros moradores de rua que querem pegar seu lugar ou uma peça de roupa ou ainda pegar seus cigarros. Para nós, os passantes são invisíveis. Para o poder público, só existem quando há alguma festividade na cidade e é necessário escondê-los como lixo embaixo do tapete para a visita não ver.
Ontem ao passar por ali, lá estava o George Bem cantarolando sua canção preferida, deitado na calçada, fumando um cigarrinho, depois daquela janta saborosa distribuída por voluntários, anjos enviados para cuidar daqueles que nada tem e que ninguém nota. No mesmo momento vereadores e convidados passavam por ali a caminho da Câmara para mais uma sessão, advogados com passos apressados e com sérios semblantes iam e vinham da OAB sem percebê-los.
Hoje pela manhã passei ali novamente, os moradores de rua já tinham se dispersados, menos George Bem que continuava ali, deitado. Estranhei. Eles costumam sair cedo para batalhar uma graninha para o almoço, uma caninha, até mesmo uma pequena quantidade de droga para fazer sonhar e se afastar da realidade. Fui fazer o que saí para fazer, demorei um pouco e quando voltei, uma ambulância do corpo de bombeiros estava no local, George Bem não existia mais, era só um corpo na calçada onde agora, muitas pessoas se aglomeram para saber o que está acontecendo. Espero que ele não tenha sofrido. Já devia ser sofrimento demais viver com tantos fantasmas e dúvidas à respeito da misericórdia divina, uma vez que sempre tentou ajudar a quem precisava e procurou ser um homem íntegro durante toda a vida, não merecia aquele destino.
O corpo foi posto no rabecão que partiu para o IML. Talvez ele seja sepultado numa cova rasa e sem identificação, sabe-se lá onde. As pessoas foram se dispersando e a vida voltou ao normal na cidade. Na farmácia ao lado o locutor anunciava as promoções do dia e da sua caixa de som saia o fundo musical que parecia uma homenagem e um adeus ao querido George Bem:
“Ela já não gosta mais de mim...”
Que pena!
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.