Futebol e churrasco mantêm São Gonçalo de pé - por Mário Lima Jr.
Imagine morar em uma rua sem asfalto, onde o esgoto vaza há anos. Ouvir tiros toda hora. Mover duas barricadas pra entrar e sair de casa de carro. Enfrentar engarrafamentos diariamente no 484 ou no 532 pra chegar ao local de trabalho quase duas horas depois. Sem trem, metrô, barca, nem ciclovia, na volta pra casa o mesmo sofrimento. O que você faria nos domingos de folga? A maioria dos homens gonçalenses encontra os amigos pra jogar bola, bater papo, comer churrasco e tomar cerveja. Hábito que ocupa posição tão especial que influencia também a vida de mulheres e homens que não participam dele.
Os problemas de São Gonçalo afetam o território inteiro de maneira uniforme. Formas de diversão populares em outros municípios, a praia e o samba entram na rotina apenas de gonçalenses de raras localidades. Resta o futebol, quase sempre combinado com o bar. Geralmente o evento é mensal ou quinzenal, nos grupos maiores, mais ativos e animados. Os integrantes marcam a data, o local e a forma de contribuição pelo WhatsApp. É na ferramenta que a personalidade e a própria existência do grupo se manifesta primeiro. Grupo sem WhatsApp não existe.
Na data do jogo, os participantes se encontram antes das 9h. Enquanto aguardam os atrasados, partilham um café da manhã improvisado na padaria mais próxima. Nesse primeiro ponto de encontro, que pode não ser o local do jogo, as brincadeiras começam devagar. A cara de sono, a roupa amarrotada ou o erro de gramática cometido no WhatsApp no dia anterior são motivos de zoação. Logo o volume aumenta e é gente falando pra todo lado, mas o clima é de amizade antiga e profunda. Grupo de futebol gonçalense não é bagunça nem desorganização, a admissão leva em consideração se o cara “é gente boa ou não é”.
A divisão dos times é um dos momentos mais engraçados do evento, a essa altura o riso está rolando solto. Ninguém quer jogar no mesmo time que os pernas de pau. Nem assumir que não tem habilidade nenhuma com a bola. Então os jogadores sem talento são distribuídos igualmente entre os times, depois de muita discussão. A carne do churrasco aguarda o fim da partida. A cerveja e o refrigerante das crianças ficam no gelo ou no freezer. Estão espalhados por São Gonçalo campos de grama sintética alugados por hora com boa infraestrutura: banheiro, chuveiro, churrasqueira e sinuca.
Durante o jogo, alguém de fora do grupo pode se assustar com os desentendimentos com o juiz. Às vezes parece que a violência vai começar, os dois times se encaram gritando e gesticulando como doidos. Até que surge um sorriso no canto da boca do jogador que demonstrava ser o mais raivoso. O desentendimento era real, o rancor era totalmente falso, teatral.
No futebol e no churrasco o gonçalense simula a felicidade. E se preocupa com o bem-estar do restante da cidade. Organiza rifas comunitárias, arrecada cestas básicas para famílias com dificuldades financeiras e provê aconselhamento gratuito aos membros do grupo com problemas pessoais. Não por acaso, candidatos a cargos políticos tentam se aproximar e patrocinar os eventos. Através do futebol e do churrasco São Gonçalo é discutida por si mesma, por quem realmente padece com tanto descaso, e a esperança é construída pela confraternização.
Mário Lima Jr. é escritor.