Eu e Deus
SÃO GONÇALO DE AFETOS
Por Paulinho Freitas
Ainda era primavera nesse aprazível recanto do mundo chamado São Gonçalo, quando meu irmão me deixou, para seguir carreira solo no infinito. Ele tocava e cantava, um verdadeiro show man, muito engraçado, com tiradas que só aquela mente poderia fazer. Era uma criança grande. Um coração enorme, cuidando de quem precisasse e sem acreditar nas maldades do mundo. Tinha várias religiões e se achava o melhor conhecedor de todas elas.
Lembro dos natais em que ele passou com a gente e quando o relógio avisava que já era hora de trocar os presentes e desejar um Feliz Natal a todos, ele tomava a palavra e dizia um versículo bíblico, na maioria das vezes, dizia ser Efésios, ele adorava essa palavra, mas na verdade nada tinha haver uma coisa com a outra.
Ele se achava. Pegava o violão e começava a cantar uma de Caetano Veloso e não sei como trocava por Raça Negra no meio da música. Levantava, pedia palma de mão, parecia estar dando um show para milhares de pessoas. Ele era demais. Numa madrugada do dia de Cosme e Damião ele nos deixou.
Sempre fui católico. Fiz primeira comunhão, participei do Grupo Jovem, toquei violão nas missas dominicais etc. Gosto das religiões de matrizes africanas também. Não entendo nada do assunto, mas me emociono com alguns cânticos e respeito muito a sabedoria daqueles que as praticam. Até histórias sobre, já escrevi. Fiz músicas também. Tanto para Santos quanto para entidades e orixás. Mas a partida de meu irmão me fez repensar minhas certezas.
Eu o levei ao hospital no dia em que ele passou mal. Lá, depois de uma tomografia, foi diagnosticado um entupimento no reto e uma cirurgia foi indicada em caráter de urgência. Vínhamos pelo corredor e um médico apareceu, o pegou pelos ombros, o levando para uma sala, me pedindo para que esperasse ali. Fiquei esperando ele voltar, mas um segurança me disse que não podia ficar, mandou que eu entrasse numa porta e esperasse. Quando abri a porta, percebi que estava do lado de fora do hospital e ali permaneci o dia inteirinho, só conseguindo notícias do meu irmão no final da noite.
Quando ele teve alta médica eu o levei para casa. No carro ele cantarolava um hino bíblico que ele adorava, falava sobre um pastor que tinha cem ovelhas, perdeu uma e não descansou até encontrá-la. É uma comparação da situação de Deus para conosco. Só que no caso da ovelha, uma hora ou outra, ela servirá de alimento ao pastor. Quando chegamos a casa dele, a primeira coisa que fez foi “salvar” as entidades que ele cultuava na Umbanda. Ele batia tambor e cantava num centro espírita. Um contradita.
Não demorou quinze dias e tive que levá-lo de novo ao hospital. Nova tomografia, nova cirurgia recomendada, novamente nós no corredor, novamente o mesmo médico o abraçou para entrar naquela mesma sala. Ainda perguntei o nome do médico que disse se chamar Gabriel. Novamente me mandaram entrar numa sala e novamente ao abrir a porta estava fora do hospital. Meu irmão chegou a ir para a enfermaria, depois para o CTI, de onde fez sua passagem.
Naquele dia minha conversa com Deus foi intensa. Discutimos bastante. Tem um altarzinho na varanda e eu, todos os domingos acendia velas, punha cerveja para quem de direito e trocava as balas das crianças. Às segundas feiras saía caminhando pela rua, acendia um cigarro e abria uma latinha de cerveja e deixava num cantinho para o povo da rua. Naquele dia desfiz o altar, parei de acender velas, parei de rezar as muitas rezas que fazia. No meu coração revoltado, tudo o que fazia para os santos não me valeu de nada. Meu irmão se foi.
Mas, lembro ter perguntado na recepção do hospital por aquele médico que levou meu irmão nas duas vezes em que ele entrou naquela sala e a informação que tive foi de que não havia nenhum médico com o nome de Gabriel lá. Isso pôs por terra a minha intenção de virar ateu. Além disso, vejo uma senhora passando pelas ruas do centro com uma caixa de som tocando cantos bíblicos e de quando em vez faz pregações com testemunhos de sua vida e dos milagres que ela credita a Deus terem acontecido com ela.
Vejo pessoas, num calor de quase quarenta graus, com vestidos que vão até os pés, de mangas compridas e outras de terno e gravata pregando e louvando a Deus com uma fé que emociona. Fico imaginando aqueles que em nada acreditam, devem ter um vazio enorme por dentro. Continuo revoltado, mas me acovardo diante da possibilidade de me virar sozinho na vida, de não ter em que me apoiar nas horas difíceis. Naquela hora em que é só você e a esperança.
Mas por pirraça vou continuar tentando ser ateu, por via das dúvidas, Graças a Deus!
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.