Estacionamento
Por D.Freitas
A vida vem me deixando mais duro. Perco aos poucos a facilidade em mostrar os dentes para qualquer pessoa que se aproxima, perco aos poucos a facilidade em confiar e perco cada vez mais a vontade de ser alguém educado cem porcento das vezes.
A rotina também nos muda. Quando a gente a acompanha, passamos por tudo rápido demais ou vivemos no automático. Robóticos o suficiente para não lembrarmos o rosto do trocador do ônibus que pegamos todos os dias, a voz da recepcionista da academia e todo tipo de coisas simples que deveriam ter pelo menos um lugar em nossa memória recente.
Enquanto caminho até o carro, divago nesses pensamentos quando sou surpreendido por uma voz com um sotaque nordestino extremamente forte. Educadamente, ao me chamar, repete inúmeras vezes : Boa noite, moço. Boa noite, moço.
Escuto a voz aumentar aos poucos como se chegasse a mim através da água, mais próxima enquanto emerjo, embora não houvesse água alguma perto. Respiro ao parar de me afogar nos pensamentos. Armo meus músculos ainda quentes do treino na academia e me viro em direção a voz de forma ríspida, respondendo a saudação com um boa noite não tão amigável.
Em minha frente pousa um senhor franzino, que me olha de baixo para cima mesmo tendo quase a mesma estatura que eu. Não demoro a perceber que não se trata de algo perigoso como um assalto, mas ainda não perco a minha casca.
O homem diz ter vindo para Manaus à procura de emprego. Ele "mais a mulhé". Contudo, como a gente costuma aprender com o passar do tempo, nem sempre tem um pote de ouro no fim do arco-íris e ele infelizmente se deparou com essa realidade em uma idade um tanto avançada. Longe de casa e sem emprego, ainda teve o azar de encontrar um jovem bêbado que o derrubou de sua moto com sua esposa em uma conversão proibida. Perdeu seu meio de trabalho informal e o movimento de uma das suas pernas.
A esposa perdeu o movimento de ambas. Desesperado foi para a rua pedir dinheiro. Não para comprar comida, ou para comprar passagem de volta para sua terra, mas para comprar gás, alegando com lágrima nos olhos que só vinha se alimentando de biscoito e suco em pó.
Em sua experiência de vida, guardou um dinheirinho para emergência e já comprou sua passagem de volta enquanto ainda trabalhava, estocou comida para não faltar nada para os dois, contudo esqueceu de um das leis mais comuns da vida: o fogão vai apagar involuntariamente pela falta de gás sempre que estiver sem dinheiro. Ao disparar essa frase seca as lágrimas e começa a rir. Percebo que acabo sorrindo também pela primeira vez durante nossa conversa. Nos identificamos. Só então nos apresentamos. Acabo lhe pagando um café da tarde e ouvindo mais da sua vida e é belo ouvir ele falar de algo que não o faz chorar.
Seu Marcelo tem um sotaque tão forte que eu nunca tinha ouvido, mesmo tendo viajado bastante, tem histórias tão diversas que muitas vezes penso em questionar a veracidade, mas desisto pois gosto de ouvi-lo falar. Penso em verificar a hora e percebo que estou sem celular. Vou até o carro e nesse momento de silêncio percebo que fui contra a rotina e a dureza da vida, sorrio pois é algo bom.
No banco do carona, o celular berra trinta ligações perdidas da minha esposa. Retorno a ligação, explico a situação e recebo meu merecido "tá" absurdamente seco.
Volto ao café, me despeço rapidamente de seu Marcelo. Desejo toda a sorte do mundo, faço uma força aqui e outra ali e consigo pagar metade do seu gás de cozinha. Emocionado, ele tenta me abraçar enquanto diz adeus, hesito por um segundo em aceitar esse abraço e vou o caminho inteiro até em casa me culpando por isso. Me perguntando quando foi que me tornei menos humano. No raro momento em que não estou escutando música enquanto dirijo, existe um espaço para perceber o quão cruel tudo poderia ter sido com aquele senhor.
O medo e vergonha que existiam em seu olhar quando me abordou. A raiva e desprezo que existia no meu. Quantas vezes ele encarou esse olhar? Quantas vezes se sentiram superiores a ele e nem pararam pra ouvir a sua história? Me pergunto quando foi que todo mundo se tornou menos humano.
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Davi Freitas (D.Freitas) nasceu em São Gonçalo, cria da cultura gonçalense, desde sempre conviveu com músicos, poetas e escritores. autodidata, aprendeu violão e bateria sozinho e junto com o irmão Lucas Freitas fez algumas apresentações até ter, por motivos profissionais, que mudar de estado. Como escritor, participou, pela Editora Apologia Brasil da Antologia em Tempos Pandêmicos e inicia agora sua trajetória no mundo das crônicas e contos.