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Ensinamentos de aprendiz

Por Hélida Gmeiner


Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

Com a primeira aprendi sobre a natureza humana. Ela cursava o, ainda, Jardim de Infância, hoje Educação Infantil. Era, acho que ainda é, uma menininha muito atrevedinha, senhora de si.


Daquelas que não gostam de perder uma discussão, mas é também esperta, reconhece uma

desvantagem e ataca com astúcia.


E estava muito zangada com a “tia” que a havia contrariado. Chegou bem a tempo de impedi-la de fazer mais uma travessura. Com um “bico” enorme, ficou pensando como revidar. De repente começou a falar:


- Sabe tia, todo mundo é chato! O papai é chato, a mamãe é chata, minha irmã é chata, a vovó é chata... (e, no meio da declaração, atingiu seu verdadeiro alvo), VOCÊ é chata. Todo mundo é chato!! Um pouquinho chato, né?


A atingida contra-atacou, para ver como reagia a pequena oponente:


- Sabe que você tem razão, Fernanda, todo mundo é chato, até mesmo você!


Vermelhinha de raiva, a menina saiu “vendendo azeite”, nem olhou

para trás.


Realmente todo mundo é “chato”, em algum momento, com alguém ou por alguma razão, a gente acaba sendo impertinente. Além do mais, a chatice alheia é mais fácil de aceitar, do que a nossa própria. Somos humanos desde bem cedo


Com a segunda percebi que vivemos reduzindo as coisas. Ela tinha sete anos e estava aprendendo a ler. Era uma garotinha meio insegura, um tantinho mimada, mas muito perspicaz. Gostava de questionar todo mundo, sobre tudo. Revivia todo dia a tal fase do “por quê?”.


A professora usava como método, uma “palavração” meio esquisita, na verdade parecia mais o famoso Ba- Be- Bi- Bo- Bu. Mas a aula era cheia de brincadeiras e truques, havia muita música e muita conversa. E o melhor é que em diversos momentos quem devia aprender é que ensinava e quem tinha que ensinar aceitava aprender, sem sentir doer-lhe a vaidade.



Um belo dia, estavam nos famosos processos de avaliação da leitura, ao qual a maioria das escolas chama de “tomar leitura”. A professora chamou nossa garota para que ela lesse algumas palavras. Ainda não estavam lendo frases, como pressupõe o método: primeiro, palavras e sílabas, depois frases e textos.


Assustada, e convencida que fora, em espaços anteriores, de sua ignorância, ela argumentou:


- Eu não sei ler não, tia!!


A professora, tentando transmitir-lhe segurança insistiu:


- Claro que sabe, é fácil, tenta só!


Acho que foram muito convincentes quando lhe disseram que era incapaz de ler. Ela resistia bravamente, mesmo a tentar:


- Eu não consigo, tia, é muito complicado!


A interlocutora percebeu que ia ser mais trabalhoso convencê-la e decidiu partir para o argumento mais direto e confiante que pudesse aplicar:


- Que nada, você já sabe ler, Alessandra, quer ver? Vá guardando em sua cabeça o que eu digo: Essa letra com o A não faz LA? E com o O?


- Faz LO (?). Ela não entendia onde a professora queria chegar.


- Então, muito bem, guarde isso na cabeça. Agora, e essa aqui, com o A não faz BA? E com o O?


- BO, tia. Ainda sem alcançar o pensamento da professora, que insistiu:


- Agora junta os dois pedacinhos, começando pelo LO.


A menina pensou, pensou. Foi fazendo um movimento com a boca, que só quem já viu uma tentativa de ler pelo método fonético sabe como é (o método fonético também apoiava as aulas dessa professora), e finalmente conseguiu:


- LOoooBOooo, LO-BO, LOBO; lobo! É lobo, tia?! Olhar incrédulo.


- É. Viu como você já sabe ler?


A alegria da professora contrastava com a perplexidade da garota, que exclamou boquiaberta:


- Ler é isso!!!


É verdade, ler é isso, mas não é só isso. Não é fragmentando o sentido que se faz leitores/leitoras. Hoje diria a Alessandra: Ler, de verdade, é encontrar razão para ler. A gente pode “juntar pedacinhos”, mas precisa encontrar motivo para isso. O sentido é tudo.



A terceira me ensinou que a lógica está nos olhos de quem vê. Ela era a mais velha das três, estava com dez anos, quando se deram esses fatos. E era uma mistura das duas primeiras.


Era mimada e perspicaz, esperta e desaforada. Mas foi com uma questão inocente que chamou minha atenção.


Esse caso não aconteceu na escola, mas educador ou educadora tem cacoete de viver ensinando e, mesmo sem perceber, vive aprendendo.


Foi num triste sepultamento. O cemitério, como a maioria dos cemitérios, era cercado de túmulos antigos e assustadores. E esse estava muito mal conservado, o mau cheiro era de causar náuseas.


O mórbido desejo daquela menina e de seu irmão, de assistir ao sepultamento de uma tia avó, foi atendido, pois eles estão na idade de curtir morbidez, coisas da pré-adolescência.


Depois que baixou o caixão, voltavam lentamente, pelas alamedas quando eles repararam nos túmulos de criança. Muitos, cheios de pequenos brinquedinhos. Coisa muito triste mesmo.


Eles perguntaram o que era aquilo e receberam fria resposta:


- São de crianças. São os parentes que “enfeitam” com esses brinquedos.


- Como assim? Perguntou a menina surpresa.


- Hully, são túmulos de crianças. Você sabe, criança morre também!


- Que morrem eu sei, claro. Mas se enterra criança!!! Os olhinhos esbugalhados denunciavam seu horror.


Acho que ela jamais tinha atinado para aquilo. Podia ser lógico para todo mundo. Para ela não era. Morrer tudo bem, vá lá, mas ser enterrado?! Ela me mostrou que saber uma coisa não significa, necessariamente, fazer relações consideradas lógicas. Os sentimentos, as emoções, são importantes elementos de análise. Como se diz: “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Quem lida com pessoas, especialmente com crianças, não pode esquecer-se desse ensinamento.


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Hélida Gmeiner Matta é professora da Educação Básica da rede pública. Pedagoga, Especialista em alfabetização dos alunos das classes populares, Mestre em Educação em Processos Formativos e Desigualdades Sociais e membra do Coletivo ELA – Educação Liberdade para Aprender.



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