Domingo - por Paulinho Freitas
SÃO GONÇALO DE AFETOS
Heitor e Maria tiveram oito filhos, quatro meninos e quatro meninas. Heitor sustentava a família com os rendimentos obtidos, a duras penas, num pequeno comércio construído na parte da frente da modesta casa em Itaitindiba, num tempo em que o bairro ainda mantinha um jeitinho bem rural, poucos habitantes, água e luz precária. O meio de transporte mais usado era o de montaria, pois naquela época o transporte público não chegava lá.
Das meninas, de Elza, a mais velha, até Bernadete, a mais nova, por imposição do pai teriam que fazer o curso normal e serem professoras. Dos meninos, de Laerte, o mais velho, a Heitorzinho, o caçula, um advogado, um médico, um administrador de empresas e um engenheiro. Essa era a meta de Heitor, a obsessão de vida do sem estudo e muito carrancudo chefe daquela família.
Aos domingos todos à mesa e antes do almoço ser servido cada um tinha que falar sobre tudo que fez naquela semana, ele queria saber de tudo. Um dia, Heitorzinho disse que não tinha nada a dizer, que nada diferente tinha acontecido. O pai deu um murro na mesa que fez subir os pratos como se uma bomba explodisse vociferando:
_ Tu não foi pra escola desgraça? Responde!
E Heitorzinho respondeu:
_Fui sim senhor.
E o pai continua:
_ A professora não ensinou nada?
E Heitorzinho responde:
_ Ensinou sim senhor.
O pai continua:
_E tu aprendeu?
Heitorzinho já com o xixi querendo sair pernas abaixo:
_Aprendi sim senhor.
Aí veio o golpe de misericórdia:
_ Então me ensina, enquanto eu não aprender ninguém come nessa casa.
A vida não era fácil para quem tinha Heitor como pai.
Mesmo com todas as dificuldades Heitor criou os filhos e formou todos eles do jeitinho que sonhou. Hoje mora num bairro nobre, numa grande casa, num belo condomínio construído pelos filhos onde moram todos. Aos domingos, na casa de Heitor apenas dois pratos estão sobre a mesa na hora do almoço. Pela manhã, filhos e netos já seguiram cada um para seu lado e nem a benção pediram ao velho Heitor e a doce Maria.
Após o almoço Heitor segue de carro junto com sua Maria até Itaitindiba, a velha casa ainda está lá, já em ruínas mas resistindo ao tempo e guardando muitas histórias, muito amor, cumplicidade e luta. Heitor para o carro e ficam os dois ali, perdidos no tempo vendo as crianças brincando, indo e vindos do colégio, crescendo e fazendo o velho Heitor chorar a cada festa de formatura.
Agora, depois da missão cumprida não consegue entender onde errou, onde foi que o tempo separou a família, onde o almoço de domingo deixou de existir. Maria alisa os brancos cabelos de Heitor que agora, mais velho e mais manso se deixa acarinhar e se permite deixar a lágrima rolar sem ter que esconder. Ele olha para a casa olha para Maria e resmunga:
_É o progresso Maria, é o progresso.
Dá a partida no carro, a noite já vem caindo e uma cortina de neblina já vem cobrindo a serra. No condomínio todos já preparam suas vidas para mais uma semana, ninguém notou a ausência do velho casal.
Lá se foi mais um domingo.
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.