“Desde que o samba é samba é assim" - por Paulinho Freitas
SÃO GONÇALO DE AFETOS
Anos oitenta, ainda sob olhar do gigante que vive deitado, mas não dorme, o carnaval de rua ainda tinha um jeito inocente de ser e os blocos de sujo dominavam praças e avenidas. Arlindo Catuqui era um folião daqueles que saiam de casa na sexta-feira e só voltavam na quarta-feira de cinzas depois do meio dia. Apesar da beleza e um corpo sarado não dava sorte com as mulheres, era desajeitado nas palavras. Enquanto estava nos olhares estava tudo bem, mas bastava abrir a boca e as mulheres já o deixavam falando sozinho.
Naquele carnaval Arlindo Catuqui estava decidido a conquistar uma mulher, não para passar o carnaval, mas sim para dividir todas as datas festivas, fazendo da vida uma eterna comemoração pela existência..
Ali pelos lados do bairro Ponta da Areia, em Niterói, saía o bloco do Estaleiro Mauá no sábado de carnaval, bloco este organizado pelos funcionários e que percorria o centro da cidade, dispersando-se na Rua São João.
Naquele sábado de carnaval, Arlindo Catuqui saiu de São Gonçalo vestido de índio, chegou antes do bloco sair e começou a bebericar. Bebe uma, canta um samba, bebe outra e dá uma olhada em volta para ver o movimento. Numa dessas olhadas seus olhos encontraram os de Celeste, ela não era bonita, mas isso não importava para Arlindo Catuqui, o que importava é que ela tinha cheiro de mulher fogosa, tinha um olhar que hipnotizava.
Arlindo Catuqui se apaixonou na hora. Quando o bloco saiu, ele a perdeu de vista e foi encontrado por ela antes na Rodoviária. Ela pulou em seu pescoço e nenhuma palavra precisou ser dita, estavam felizes, abraçados, brincando e cantando e o mundo parecia não existir a volta deles. Tão absorvidos pela paixão estavam que não viram quando um grupo de rapazes cercou o casal.
No meio deles Aquiles Badigé, este teve um colóquio amoroso com Celeste, mas não deu certo e ela separou-se dele. Badigé não se conformava, volta e meia aparecia no portão da casa de Celeste tentando uma reconciliação, que ela, irredutível, negava veementemente.
Ao ver Celeste tão feliz ao Lado de Arlindo Catuqui, Badigé tomou-se de ódio, juntou alguns amigos que estavam no bloco e começaram a agredir o pobre Catuqui, que pego de surpresa não conseguiu reagir. Foram socos, pontapés e por final Badigé pegou um pedaço de madeira e desferiu alguns golpes na cabeça de Catuqui que perdeu os sentidos.
Celeste ainda tentou intervir junto com outros foliões, mas Badigé sacou sua arma e deu alguns tiros para o alto dispersando a multidão. Aproveitou a correria e fugiu, deixando Catuqui ali, entregue a própria sorte.
Arlindo Catuqui passou dois longos anos no hospital. Perdeu massa encefálica, a visão e foi submetido a várias cirurgias, sobreviveu, mas nunca mais seria o mesmo, rosto deformado, sem memória, sem passado e um futuro de dependência da caridade alheia.
Naquele mesmo carnaval Aquiles Badigé se meteu em nova confusão, sacou sua arma para um desconhecido, só que desta vez levou a pior, seu oponente tomou-lhe a arma, descarregou toda a munição nele e fugiu. Aquiles Badigé foi enterrado com honras militares, a família recebeu placa de medalha de honra ao mérito pela bravura do ente querido e a filha, uma pensão polpuda que só perderia se contraísse matrimônio no civil.
Celeste nunca mais encontrou rumo em sua vida, nunca mais carnaval, nunca mais cantar, nunca mais amor. Quarenta anos depois o noticiário parece repetir sua história todos os dias, é como se ela renascesse cada dia num lugar e cada dia agredida por um Badigé diferente.
”A tristeza é senhora...”
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.