Conceição
SÃO GONÇALO DE AFETOS
Por Paulinho Freitas
Numa época em que a merenda era pão com mariola, com ovo ou banana, época em que chegávamos na escola e, de surpresa tinha vacina obrigatória e a gente não tinha nem ideia para que servia e de onde vinha aquela medicação. Era levantar a manga da camisa e receber um tiro do instrumento que parecia uma pistola e deixava sua marca para o resto de nossas vidas.
Depois da marca de sandálias a havaiana número 37 nas costas, esta era nossa segunda tatuagem a qual tínhamos orgulho em mostrar. Quando ficava a marca era sinal de que a vacina cumpriu seu papel de nos imunizar até de nó nas tripas. Tempo em que quando a professora entrava em sala de aula era como se ali estivesse uma divindade. Não se ouvia uma mosca voando. Era atenção total para o que ela tinha a dizer.
Depois de ver numa loja aqui no centro de São Gonçalo, uma criança que não parava quieta de jeito nenhum. A mãe fazia de um tudo para contê-la, abraçava, acarinhava, prometia comprar o mundo e fazer de Marte seu quintal, mas a criança bulia em tudo o que via pela frente. Foi um sufoco para aquela mãe comprar algumas peças de roupa e conseguir sair da loja sem que a criança quebrasse alguma coisa, lembrei imediatamente de Conceição. Professora, uma das melhores, talvez a mais perspicaz e sensível pessoa que conheci.
Quando Belarmino chegou em nossa classe, depois de ter pulado de escola em escola, excluso ou transferido, todos achavam que a estada dele ali seria uma curtíssima temporada.
Ele não parava sentado na carteira, corria sozinho entre as mesas como se estivesse brincando de pique com alguém. As crianças tinham que redobrar a atenção para que pudessem aprender alguma coisa. Conceição procurava um jeito de acalmar, domar aquele furacão. Um dia, do nada, ele sentou e fixou seu olhar para fora da janela. Conceição foi até ele e perguntou o que ele via de tão interessante lá fora. Ele respondeu:
É uma borboleta azul com bolas amarelas numa asa e vermelhas na outra asa. É uma raríssima aparição. Ela pousou naquela árvore verde e marrom. Ela parece com a árvore e a árvore parece com ela.
Não sei se ela virou árvore ou a árvore virou borboleta. Conceição de imediato perguntou: A borboleta azul pousou na árvore. Onde está o sujeito? Sem tirar os olhos da borboleta Belarmino respondeu: _Ora professora, é a borboleta azul e o predicado é pousou na árvore. Naquele momento o sinal anunciando o recreio toca, as crianças saem em desabalada carreira para abocanhar suas merendas e brincar no pátio, Conceição passa o intervalo inteiro conversando com Belarmino, ela conseguiu inserir a matéria de acordo com as coisas que prendiam a atenção do menino, com o tempo descobriu que ele já havia lido todos os livros que seriam usados durante aquele ano e tinha um enorme conhecimento sobre as matérias. Era autodidata, tinha natural leitura dinâmica e pensava mais rápido que qualquer colega de sua idade.
Nesse tempo as crianças com o perfil de Belarmino que não tiveram a sorte de encontrar um anjo Conceição, tomavam calmantes fortíssimos, apanhavam por serem impulsivos e não obedecer aos pais. Muitas acabavam internas em escolas de competência duvidosa para abrigá-las e a tendência era tornarem-se adultas em hospitais psiquiátricos tomando um caminho sem volta para fora da realidade. Ainda hoje, muitos “Belarminos” daquela época perambulam pelas ruas ou pelas Residências Terapêuticas, sem saber se caminham para o fim ou o final já passou e estão caminhando por caminhar.
Aquele Belarmino foi salvo pelo ser humano Conceição que abraçou a única profissão não obrigada a se ajoelhar diante dos imperadores, reis e rainhas, a de professora. Não existe profissional de maior valor e de menor remuneração. Não existe ser humano mais humano e menos respeitado.
Um vivas à Conceição!
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.