CICI SORRISO: Coisas do Porto Novo - por Paulinho Freitas
SÃO GONÇALO DE AFETOS
Cici Sorriso não é dotado de grande beleza, pelo contrário, passaria sem ser notado em qualquer lugar. Ocorre que ele não deixa isso acontecer, parece ter cabeça de coruja, olha em todas as direções, está atento a tudo o que acontece ao redor, sabe todos os assuntos possíveis e imaginários, do motivo da briga de vizinhos até o conteúdo da conversa entre Putin e Zelensky, num possível e esperado telefonema para selar a paz. O negócio de Cici é ser o centro das atenções. Com um sorriso que não cabe na boca de tão grande é querido por todos, invejado por alguns, odiado por outros tantos. Coisas de artista.
Cici Sorriso só tem um momento em que perde o chão, perde o rumo e se desliga do mundo, é quando Ana passa. O andar rebolativo por natureza, jeito de andar, sem precisar forçar a barra, todos os pescoços viram a cabeça em sua direção. Inebria toda a Rua Maria Rita com um discreto perfume. Cici Sorriso já fez de tudo, gastou todo o seu repertório de cantadas e Ana nem nota sua presença. Cici é uma bomba de amor prestes a explodir em gritos de eu te amo pelas ruas até que um carro do SAMU o recolha. Mal sabe ele que para mal de amor não há remédio e nem internação que cure.
De tanto insistir viu, numa tarde de muita chuva, seu desejo realizado. Ana finalmente se rendeu às cantadas de Cici Sorriso e o recebeu em sua casa. Depois de uma taça de vinho Ana pediu licença, iria se produzir e disse a Cici, com voz aveludada, enlouquecendo ainda mais aquele coração apaixonado, para ficar “bem” à vontade, ela voltaria sem demora.
Quando Ana apareceu na sala novamente encontrou Cici nu, como veio ao mundo e com o efeito de dois compridos azuis em andamento, arfando e vermelho como um tomate. Antes mesmo de tocar o cobiçado corpo de Ana alguém, sem paciência, começou a esmurrar a porta. Ana, enrolada numa toalha, com as coxas à mostra encostou-se na parede aterrorizada falando baixinho para Cici:
_ É meu marido! Cici corria de um lado para outro da sala sem saber o que fazer. Ela com os olhos cheios de pavor, quase num sussurro falou:
_A janela do quarto dos fundos! Pule a janela!
Cici não teve tempo nem de pegar suas roupas, pulou nu. O apartamento é térreo e o muro é baixo, pulou também o muro, mas por estar escuro caiu dentro do valão que passa atrás do condomínio. Adão, um carrancudo vizinho de Ana, ao ouvir o barulho, pensou se tratar de um ladrão e saiu atrás de Cici com um chicote feito de tubinhos de soro hospitalar dando-lhes ora nas costas, ora nas pernas, Cici passou por baixo da ponte e por entre o matagal, conseguiu fugir de seu algoz. Lá no apartamento Ana e sua amiga Luiza bebiam vinho e riam muito da cilada armada para afastar o chato paquerador.
Lá no bar Cici Sorriso apareceu três dias depois e como se nada houvesse acontecido se plantou na porta na mesma hora de sempre. Ana passa de volta do trabalho perfumando a Rua Maria Rita, aguçando o imaginário dos adolescentes, atraindo os olhares dos marmanjos e tirando mais uma vez o Cici da órbita terrestre. Ela o olha com desprezo de cima a baixo, levanta a cabeça e segue seu caminho.
Cici fica olhando até ela entrar no condomínio. Chico do coco se aproxima e fala baixinho:
_Tô sabendo que você pegou a Ana. Pelo visto a mulher é brava, você está todo lanhado de unha, parece que levou uma coça!
Cici Sorriso olha de rabo de olho no para o amigo, passa as mãos nos vergões, enche o peito e se gaba:
_ Eu gosto de mulher assim, bem nervosa, brava feito onça, gosto de domar a fera, comigo não tem dessa não, eu arrebento! E tem mais, se vacilar faço até um filho nela!
Chico do coco abaixa a cabeça, engole uma gargalhada e devolve ao amigo:
_ Menos Cici, menos!
Começa a chover e antes que as ruas do Porto Novo fiquem totalmente alagadas, Cici Sorriso pega o caminho de casa. Os vergões doem e ele reclama consigo:
_ O dia que eu pegar ela de jeito não tem trovoada que faça eu largar! E ele mesmo responde: _Deixa disso Cici, você ainda se lasca!
Cici Sorriso dá uma gargalhada e corre na chuva como uma criança, pisando nas poças de água e chutando a chuva.
_Toma jeito Cici!!!!!!!!!!
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.