Caminhos
SÃO GONÇALO DE AFETOS
Por Paulinho Freitas
Desde guri ouço que é preciso andar na linha para que as recompensas venham. Durante minha vida toda tentei não sair dos trilhos, na maioria das vezes que escorreguei, dei com os burros n’água. É só pensar em fazer algo que não vá a favor do exigido pela sociedade e pronto. Já fico todo ralado, a queda é certa, a vara de marmelo canta no meu lombo. Tem gente que não nasceu pra esse troço de malandragem, de traquinagem ou coisas que se equiparem.
Quando eu era criança gostava muito de pipas e um dia meu colega, o apelido dele era Azul e vendia pipas, me vendeu uma, linda, toda colorida, só que o bambu estava podre e na primeira manuseada ela se quebrou. Quando fui reclamar já o encontrei gargalhando com um picolé nas mãos comprado com meu dinheiro.
Esse mesmo colega, quando adulto, montou uma oficina de autos. Levei meu carro lá para um reparo, afinal, amigos de infância, minha confiança era total. Ledo engano, ele só passou uma tinta no local que era para ser reparado e o defeito ficou lá. Já tinha pagado o conserto, reclamei, apelei para nossa amizade de tantos anos, mesmo assim ele teimou que tinha feito o reparo e ficou com meu dinheiro. Mais uma vez fui um trouxa. Comecei a perceber que nem sempre o caminho certo é o certo. Esse cara passou a vida montando e desmontando negócios que nunca davam certo e nunca se deu mal.
Outro colega de infância, o Mongol, nunca fez nada para ninguém, é a preguiça em pessoa. Ia para a escola jogar bola e paquerar as meninas. Seu pai o pôs para trabalhar bem cedo, uma vez que não queria estudar. Ele saía de manhã, junto com o pai e antes das dez já estava de volta. Inventava que o ônibus quebrou, a barca atrasou, houve um acidente, passava mal e se instalava no sofá. Na hora do almoço, esquentava a marmita, comia e caia na rua para jogar bola e vadiar até a noite quando antes do pai chegar ia para casa fingir cansaço, sempre amparado pela mãe.
As mães nasceram para amparar, não adianta, serão eternos colos, quentes e acolhedores. Mãe é a melhor criação do universo. E tenho dito! Mongol envelheceu sem uma assinatura em sua carteira de trabalho, sem um diploma sequer, sem nenhuma experiência laboral. Quando o pai faleceu, deixou alguns imóveis de aluguel, uma boa casa onde ele mora com a mãe, uma boa quantia na poupança e uma generosa pensão que a velha senhora gasta a maior parte com ele. Esse nasceu virado pra lua.
O terceiro personagem dessa história já nasceu lutando pela vida. Prematuro, com problemas respiratórios e cardíacos. Os médicos já o tinham desenganado e a família já confortava sua mãe, esperando só a hora do último suspiro. Só para contrariar o destino ele resistiu, foi lutando dia após dia e quando menos se esperava ele já estava com quinze anos, cheio de saúde, trabalhador, responsável, estudioso. Tudo de bom. O genro que toda sogra queria ter, como se dizia antigamente. Seu nome é Paulo Roberto. Trabalhava durante o dia atrás do balcão do armazém do pai e a noite encarava o banco da faculdade, onde cursou direito. Tudo para ele foi muito difícil. Quando terminou os estudos e montou um modesto escritório, perdeu os pais num acidente de automóvel.
Os negócios do pai não iam muito bem e ele herdou uma dívida de valor considerável. Passou anos trabalhando e pagando para não perder a casa, único bem da família. Paulo Roberto venceu na vida. Casou, tem um casal de filhos lindos e cheios de vida e saúde. Vida estabilizada e feliz. Paulo Roberto trabalhou para isso e estava satisfeito com sua existência.
Já pensava na aposentadoria quando numa chuva de verão sua casa foi invadida pelas águas, perdeu tudo, o telhado desabou e não há como habitar aquele lugar novamente. Com a expansão urbana, o rio que passa atrás do imóvel está assoreado e qualquer chuvinha que vier vai fazer estrago. Paulo Roberto está morando de aluguel, mas já comprou outro terreno e está construindo. A aposentadoria vai ter muito que esperar. Ainda bem que apesar da idade tem saúde, disposição e não acredita em azar.
Por coincidência passei perto de onde morávamos e vi os três, cada um em uma mesa, num bar que costumávamos frequentar. Os três bebiam cerveja separadamente, cada um com uma expressão. Azul olhava para o chão, com ar de preocupado, quase em desespero. Mongol olhava fixo para o infinito, parecia que estava posando para uma foto, mas seu semblante denunciava uma incrível tristeza e vontade de chorar. Paulo Roberto estava sereno, com um discreto sorriso. Sabe aquela cara que se faz quando se tem um monte de ideias na cabeça? Era essa a cara dele.
Cheguei a conclusão de que existe o caminho mais curto, quando a pessoa pensa em começar, já acabou e não conquistou nada. O caminho mais fácil, quando toda a água que existe no mundo não pode saciar sua sede. E o caminho eterno, onde cada tombo é uma parada para descanso, um incentivo para recomeçar e sonhar novos desafios. Garanto que a cerveja de Paulo Roberto estava muito mais saborosa.
Hoje tô assim. Sei lá!
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.