Até o carro do ovo liga o alerta pra rodar em São Gonçalo, por Mário Lima Jr.
Quando atinge seus níveis mais altos, a violência assume aspectos terríveis. Fetos atingidos na cabeça e mortos por tiros que ninguém conhece a origem, nem a polícia. Crianças assassinadas dentro de casa ou no pátio da escola, brincando com os amigos. Helicópteros aterrorizando comunidades inteiras, onde milhares de pessoas vivem, com a desculpa de que precisam perseguir e abater bandidos. Não são casos isolados, há múltiplos exemplos no estado do Rio de Janeiro. Arthur foi morto em abril do ano passado, na capital, sem nunca ter visto a luz do dia. O mesmo aconteceu com outro feto chamado Arthur em 2018, na cidade de Duque de Caxias.
Vice-campeã em número de disparos de armas de fogo no estado, segundo a plataforma Fogo Cruzado, em São Gonçalo a violência ainda se manifesta através de chacinas, assaltos a pedestres, barricadas do tráfico de drogas e consequente perda do direito de circular livremente pelo território. Em algumas localidades, a circulação de veículos é permitida mediante autorização prévia dos bandidos, que exigem que o pisca-alerta seja ligado, mesmo de dia. Pode não fazer sentido, a princípio, mas o alerta não serve apenas para que, à noite, os carros sejam notados à distância pelos vigias armados das bocas de fumo. O alerta ligado também é exigido como um reconhecimento humilhante de que você sabe quem são os verdadeiros donos do local onde está passando.
O medo da violência é tão grande em São Gonçalo que se tornou cada vez mais comum ver carros com alerta ligado em ruas de grande circulação de veículos, inclusive ônibus, sem a presença do tráfico. A questão é que o domínio do mal se aproxima das rodovias estaduais e avenidas e é mais seguro esquecer o alerta ligado do que se esquecer de ligá-lo.
Cumprem essa determinação municipal, de um poder mais temido do que aquele presente na Prefeitura e na Câmara, até os vendedores ambulantes. Carregam suas mercadorias dentro da mala aberta de um carro velho, geralmente caindo aos pedaços, transmitindo um anúncio sonoro dos seus produtos que pode ser ouvido a centenas de metros de distância. O barulho já é suficiente para que o bairro todo perceba a presença do vendedor. O alerta ligado, mais uma vez, é pedido de licença e sinal de respeito.
Se até o carro do ovo, que ainda carrega sacos de laranja e pencas de banana presos no teto e dezenas de abacaxis pendurados nas portas precisa ligar o alerta pra entrar e sair de inúmeras localidades, a estrada que a cidade deve percorrer para vencer a pobreza e a violência é longa demais. O atraso gonçalense é profundo. Em primeiro lugar, o município precisa começar a oferecer aos jovens o caminho da educação para que a violência e o trabalho precário nas ruas não sejam a única realidade disponível.
Mário Lima Jr. é escritor.