Amar é...
Por Paulinho Freitas
O relacionamento a dois deveria ser pautado pelo amor, respeito às vontades do outro, aos sonhos do outro, aceitação de gosto, cumplicidade extrema, carinho... Mas por que será que existe sempre um querendo, mesmo sutilmente, imperceptivelmente, se sobrepujar ao outro? Um tem muito medo de “desobedecer” ao outro e perder a pessoa que ama, o outro se aproveita da situação e estabelece seu “reinado”.
Tenho um grande amigo que é apaixonado por samba. Queria estar perto da escola de samba do seu coração, fazer parte, desfilar, cantar, quem sabe até fazer um samba. Sua noiva tem aversão a tudo isso; ela quer viajar no carnaval, curtir uma praia, ler, nadar, ouvir um bom rock da antiga e voltar matando as amigas de inveja. Esse meu amigo, movido por uma paixão desenfreada, faz tudo o que ela quer e vai suprimindo suas vontades em detrimento às vontades dela e vê-la feliz é a única coisa que importa. Só assim ele acha que a terá para sempre. Só que a tentação é diária e como diz o ditado, água mole em pedra dura tanto bate até que fura.
Os fogos do ano novo ainda não haviam esfriado e um carro de som parado na praia já anunciava que naquele final de semana haveria ensaio na quadra da escola e que todas as escolas coirmãs estariam presentes. Seria uma grande festa e entraria noite adentro. Os olhos dele brilhavam... Até tentou chamar a atenção da noiva para o evento, quem sabe dar uma passadinha só pra ver como era? A noiva nem lhe deu ouvidos.
Nos dias que se seguiram ele tentou tocar no assunto e sempre era obrigado a se calar diante da veemente negativa da noiva. Ele precisava fazer alguma coisa para ir àquele ensaio, a vontade era muita. Acordou na quinta-feira com uma brilhante ideia na cabeça, foi ao computador, fez um ofício endereçado a ele pela empresa que trabalha: teria que fazer uma capacitação naquele final de semana e passaria três dias em São Paulo, sede da empresa. A noiva não gostou nada daquilo, mas nada podia fazer, era trabalho.
Arrumou a mochila e lá foi ele para a rodoviária, ela o levou até lá, despediu-se dele com um beijo apaixonado e já de muita saudade, ele ficou olhando pela janela até o ônibus sair da rodoviária.
Ainda na Avenida Brasil ele desceu, ligou para outro amigo nosso que é um sambista nato, faz parte da ala de compositores da GRESU Porto da Pedra e conhece todo mundo por lá. Este nosso amigo foi quem deu “asilo político” a este pulador de cerca em início de carreira. Durante o dia fez de tudo um pouco, jogou bola, bebeu, foi a uma roda de samba à tarde e se esbaldou cantando e sambando. Parecia um turista, encantado com o ritmo que não deixa ninguém ficar parado. Já passava da meia-noite quando ele chegou à quadra, as barraquinhas na frente da escola estavam cheias de foliões já fazendo o devido “aquecimento” com muitas louras geladas, conhaques, caldos diversos e tira gosto à vontade.
Ele não se continha de tanta felicidade, foi sendo apresentado às figuras mais importantes da escola, diretoria, baianas, velha guarda, compositores, harmonia, pessoal de apoio, passistas... hum... não estou gostando disso...
Essa mistura de samba e cerveja para pessoas comprometidas e escondidas não costumam dar muito certo. Logo, logo já estava se sentindo em casa, parecia que nasceu ali, fechava os olhos e sentia a energia pulsar em seu coração que a esta altura marcava junto com a bateria aqueles momentos de felicidade. A noite estava perfeita, porém outro ditado diz que tudo que é bom, dura pouco. A madrugada já findava e o dia já vinha pedindo passagem, ele já estava um bagaço, mas jamais se entregaria, queria aproveitar até o último minuto e assim o fez.
Ao sair da quadra ainda cantarolando os refrões do samba viu um ônibus passar e, de dentro do ônibus, dois olhos arregalados dando a entender que não acreditavam no que estavam vendo, o encaravam como duas balas de canhão; era a noiva. Ela desceu do ônibus possessa. Esbravejava, gesticulava, pôs o cara abaixo de cachorro. Aliás, este foi o adjetivo mais leve atribuído a ele naquele momento. Ele tentava de todas as formas acalmar aquela fera, mais foi difícil, depois de muito tentar conseguiu falar: "Meu amor, está certo que te enganei, mas só vim ao samba, passei uma noite muito feliz, não te traí, só me diverti, cantei, dancei, isso aqui é muito bom! Veja quantas pessoas estão aqui, o povo todo gosta e a voz do povo é a voz de Deus!" Ao que ela retrucou: "Mas o povo escolheu Barrabás! Não me procure, não fale comigo, não telefone, me esqueça! Tenho prova agora pela manhã e não vou perder mais meu tempo com você. Ela pegou outro ônibus e foi embora deixando meu amigo sentado na beira da calçada, em soluços.
Depois de alguns dias ele tomou uma decisão. Ingressou na ala de compositores e quando a escola passou na avenida o estreante folião chorava emocionado e cantava tão alto que contagiou todos os componentes a sua volta fazendo aquele segmento ser o mais aplaudido do desfile.
Lembrei desse “causo” depois de ver uma menina de uns 13 ou 14 anos se acabando de sambar num de nossos ensaios. O pai, cheio de orgulho, observava a menina e com os olhos marejados aplaudia. A mãe, numa mesa mexia no celular parecendo alheia ao lugar em que se encontrava, mas os pés sob a mesa faziam a marcação junto com a bateria.
No final do ensaio, o casal nem parecia aquele de outrora. Os dois fazendo fotos com a filha tendo como pano de fundo a bandeira da Escola. Só saíram de sintonia na hora em que ele pediu para beber a saideira e ela respondeu: _ Vamos para casa. Amanhã tem trabalho cedo e à noite, tem rock and roll na veia bebê! E lá se foram os três abraçados, sorrindo e felizes. Tudo fica bem, quando acaba bem.
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.