A política de cotas faz aniversário. Vamos falar sobre racismo? Por Sammis Reachers
Nesta semana que passou, comemoramos 15 anos da adoção do sistema de cotas no vestibular da UERJ, cujo pioneirismo acabou se espalhando para todo o Brasil. Para desespero dos inimigos do reparativo e equalizador sistema de cotas, a queda na qualidade do ensino, como tais “profetas” previram, não se mostrou.
Diariamente podemos ver esses tais tecendo suas falácias anti-cotistas em suas redes sociais. O racismo estrutural, berço no qual foram fervidos, encontrou nessa questão uma brecha para espichar, explodir coração afora. Quem os conhece pessoalmente sabe que são racistas contidos em sua imensa maioria; o que a internet mascara, o dia a dia não alcança encobrir. Assim, a questão do combate às cotas tornou-se um ímã sinistro: ela atrai e revela o racismo que nos resta, que nos suja os fundilhos, que nos sobeja. Não há um racista, consciente ou inconsciente, que não suba a bordo do barco.
Divertido é o último de seus “argumentos”, que dá o tom de sua fraqueza intelectiva ou demonstra que acusaram o golpe: “Essa dívida histórica não é minha”. Pela língua que você utiliza, última flor do Lácio, complexa e bela, você nunca pagou: é herança cultural e histórica, da qual você usufrui. Assim como talvez o asfaltamento de sua rua, ou o telefone do velho Graham Bell – conquistas de suores de outros, das quais desfrutamos. Aqui o coração da falha dos falaciosos: acreditar que só se herdam bênçãos. Não, herdam-se dívidas, herdam-se problemas e obras-em-progresso a que é preciso tocar, como agentes históricos do maquinário humano.
Sim, há muitos tipos de racismo, fenômeno recorrente em muitas culturas. Aqui em Pindorama, quintal do eurocentrismo, o índio foi o primeiro a sofrê-lo, e o nordestino, quando se aventura da Bahia para baixo, o último. Muitas vezes ele vai do negro contra o negro, nas piadas impróprias que insistem em sobreviver, no desprezo velado – entre negros! – baseado na gradação da pele. Nosso racismo sobrevive no bate-papo na mesa de almoço da família embranquecida, nos meandros da cultura popular. Há o racismo, claro, do negro contra o branco.
Sofri racismo por ser “branco”? Sim, mas coisa ínfima, episódica, assimétrica e entre crianças, entre puros. Permite uma confissão? Não tive primos nem irmãos homens; na infância, ansioso por interagir, a opção era a rua. Cedo fiz a escolha de buscar amizades na parte mais, mais pobre do já pobre sub-bairro do Jardim Nazaré, num trecho majoritariamente habitado por negros. Tendo assim sido criado entre negros (grande maioria do povo gonçalense), certa vez cheguei a chorar por não ser negro como aqueles amigos da rua a quem amava. Sim, em criança chorei em meu quarto, faminto por inclusão, pois queria ser com mais força um daqueles que, ainda mais pobres que eu, não tinham um quarto pra chamar de seu. Jamais fora alertado por meus bons pais que a pele que eu desejava seria uma carga pesada, a ser sofrida por toda a vida. Pois nunca me avisaram (por inocência, amor ou impotência) que eu nascera numa sociedade doente. Uma sociedade que valorizava a minha pele paupérrima de melanina, a priori e acima de todas as outras coisas.
Quantas portas e sorrisos se me abriram ao longo da vida, apenas pela minha pele branca? Do outro lado, quantos de meus irmãos de rua tiveram seu avanço, em que direção e com que objetivos fossem, freado pelo tom de sua pele?
Cada um reage de uma maneira ao racismo. Tenho um melhor amigo, homem já de seus quarenta; nunca colocou sequer um beque de marijuana na boca. Começou a trabalhar aos treze como ajudante de bombeiro hidráulico, depois servente de obras e hoje um (baita) pedreiro. A reação dele ao racismo que sofria no dia a dia foi de desafio: Quando madrugava para ir ao batente, nesse movimento pendular da maioria do povo gonçalense, meu amigo colocava uma bela duma touca tapando-lhe quase até os olhos, uma belíssima (salve!) camisa do Flamengo e o arremate, o toque de mestre da década de noventa: uma baita pochete, tão cheia de papéis que parecia estar transportando uma pistola 45 ou talvez uma UZI. O resultado era o imaginável: todo dia era uma “dura”. Muitas vezes duas ou três, APENAS NA IDA entre São Gonçalo e algum lugar em Niterói ou no Rio de Janeiro. O que era e é uma humilhação para um cidadão, a revista abusiva por parte dos aparelhos repressores de estado, meu amigo a PROVOCAVA e fruia com certo prazer. Era sua forma solitária de desafiar o status quo, de cansar o maquinário do racismo estatal, ao esfregar em cara por cara daqueles homens (muitos de sua cor, adestrados pelos domadores para tal ofício) sua carteira de trabalho assinada, ao manter seu sorriso irônico enquanto era revistado por policiais e seguranças - geralmente tensos com a sua figura.
Triste, temerário, mas algo poético. Resistir, afinal, é preciso – e os resultados nacionais da política de cotas são o maior brado e estímulo dessa resistência. Mais do que nunca, aqui é válido o que Deus disse a seu cansado servo Josué: “Ainda há muita terra a ser conquistada.” (Js 13.1)
Quanto àqueles que detestam o regime de cotas, é muito fácil para eles detestar. Nunca sentiram o peso da cangalha. Em nosso país multirracial, suposto “paraíso” da miscigenação de Gilberto Freyre e seu clássico Casa Grande e Senzala, ainda é o negro quem sabe o que o racismo significa. Dele é a palavra, ele é o dono do debate.
Alguns livros (gratuitos) que escrevi ou organizei podem ser baixados AQUI:
Um pouco de poesia experimental? Eu experimento AQUI.
Sammis Reachers, nascido por acaso em Niterói mas gonçalense desde sempre, é poeta, escritor e editor, autor de sete livros de poesia e dois de contos, e professor de Geografia no tempo que lhe resta – ou vice-versa.