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Foto do escritorJornal Daki

Uma história de mulheres, em 'O cisne e o aviador', de Heliete Vaitsman


Não é de agora que escritores ficcionistas fazem uso de elementos extraídos do cotidiano de figuras ilustres, no intuito de compor obras cuja relevância histórica chame a atenção dos seus leitores, pela pesquisa documental elaborada entrelaçada ao discurso de criação. Com o romance O cisne e o aviador não é diferente, escrito por Heliete Vaitsman, ex-colunista de O globo e repórter do Jornal do Brasil, a narrativa desta jornalista veio a público em 2014; momento este cujas histórias de viajantes e sobreviventes de guerra estavam cada vez mais em voga.


O romance abrange parte do século XX até os dias de hoje. Por meio de digressões temporais, ora com referência à época da crescente opressão nazista na Europa, ora situando o enredo na contemporaneidade, acompanhamos o antissemitismo destruidor revelar seus lados mais cruéis e obscuros. A geografia descrita na trama abarca uma pluralidade de regiões nas quais evidenciou-se o lastro de destruição que o genocídio proporcionou. Direta ou indiretamente, dentre esses lugares referenciados na obra destacam-se a Letônia, a Alemanha, a França, o Brasil, a Polônia, o Uruguai, a Argentina, enfim. No que concerne ao quesito “narrador”, O cisne e o aviador dispõe de uma voz onisciente e inominada preocupada não só em relatar a vida do aviador Heberts Cukurs, e sua rede de relacionamentos mundo afora - até este último estabelecer-se no Brasil -, mas acima de tudo, esse locutor preocupa-se em construir uma trama composta por três personagens, as quais em alguns momentos assumem a voz enunciadora: Frida, Rosa e Clara. São mulheres que se apresentam como testemunhas de quem, de alguma forma, tomou contato com o piloto Heberts Cukurs, e cujos serviços este aviador letão parece ter prestado às forças armadas lideradas por Adolf Hitler.


Na história escrita por Heliete Vaitsman vemos os relatos das perseguições sofridas pelos judeus articularem-se no romance por meio da memória. Já no início da narrativa é permitido ao leitor saber que havia um lago repleto de cisnes na Alemanha natal de uma das personagens. A prefiguração da ave elegante, símbolo de leveza, permite ao interlocutor mergulhar no tom confessional e nostálgico da vida de tantas e quantas famílias, as quais foram obrigadas a abandonar subitamente suas raízes e a buscar reconstruí-las em lugares diferentes daqueles nos quais nasceram. Esse modo poético de narrar a tristeza dispõe de um inegável intercâmbio entre a ficção e a história, através da presença dos barquinhos movidos a pedal em formato de cisne, típicos do Rio de Janeiro, no intuito de atenuar a realidade amarga que trafega “pelas rotas arriscadas da mente” (VAITSMAN, 2014, p. 10).

A trama é narrada inicialmente por uma senhora de 90 anos, de origem germânica, acamada por estar em estado de debilidade física avançada, de antemão denota o caráter documental que reveste o romance. Por meio de um discurso literário em que jogam os afetos, este conhecimento “não é mais epistemológico mas dramático” (BARTHES, 2007, p. 19), e não pretende deixar que os absurdos do idealismo e da barbárie sejam enterrados juntos com aqueles que viveram a experiência e se sabem próximos de morrer. Embora oriunda de uma família tradicional alemã, a judia Frida não foi poupada pelas tropas de Adolf Hitler, que não hesitaram em perseguir a ela e a seus entes queridos. No desenvolver do romance, o narratário é levado a saber que o aviador letonês Heberts Cukurs, assim como a avó de Brígida, e muitas outras pessoas fugiram do velho continente e rumaram para cá - como fica evidente nas trajetórias de Clara e Rosa e suas respectivas famílias.


Contudo, se logo no início da enunciação a memória de Frida permite ao leitor enveredar pela ação romanesca, está claro que uma segunda ponta da trama incide sobre a história da também judia Rosa. Esta personagem oriunda da Letônia, assim como o piloto Heberts Curkurs, veio para o Brasil casada com Iosse, um negociante perambulante preocupado em ganhar a vida na cidade do Rio de Janeiro. Dessa forma, o interlocutor saberá que Rosa viajara de Riga, sua cidade natal, até o Brasil, alocada na terceira classe do navio, assim como as demais imigrantes que compõem a obra em questão.

Sendo assim, entre uma ou outra troca de cartas e muitas conversas de amigas, as três personagens tecem o enredo de O cisne e o aviador, as quais convergem para uma necessidade comum, ao fim das suas respectivas vidas, de narrarem aquelas experiências outrora guardadas nos lugares mais recônditos da memória. Em suma, os traumas das guardiãs da história responsáveis pela configuração da trama suavizam a dor via ficção, pois, conforme Vaitsman (2014, p. 42), “é preciso sepultar os mortos para abrir espaço no universo, e só é possível sepultá-los se forem contados”, recontados, enfim, sobrevividos por meio da obra literária.


Referências bibliográficas:

VAITSMAN, Heliete. O cisne e o aviador. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. 172p.

BARTHES, Roland. Aula. 14 ed. São Paulo: Cultrix, 2007.


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