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Foto do escritorJornal Daki

Felizarda, por Fábio Rodrigo



Era mais um dia para visitarmos o asilo. Estávamos eu e meus amigos a realizar mais uma tarefa de amor ao próximo naquela tarde de domingo. Uma vez ao mês abríamos mão de algumas horinhas para dar um pouco de carinho aos idosos que lá residem. Neste asilo, vivem cerca de 50 velhinhos, todos eles de origem bem simples. É um prédio que visivelmente necessita de reformas e que sobrevive apesar dos parcos recursos encaminhados pela prefeitura. Ao entrarmos pelo portão principal do prédio, um corredor nos levou até o salão onde os idosos recebem visitas. Era um espaço bem amplo, com sofás e cadeiras espalhadas por todo o ambiente. Os ventiladores de teto ajudavam a amenizar o forte calor daquele dia.

Percorremos todo o salão cumprimentando cada um dos idosos. A maioria estava com seus familiares; alguns, em silêncio, ouviam atentos as orações feitas por grupos de igrejas evangélicas. Após dar um pouco de atenção a cada um dos idosos, vi que uma das idosas estava sozinha. Era a única que não estava cercada por ninguém. Estava sentada em uma cadeira, cortando com uma tesoura um longo pedaço de tecido. Perguntei seu nome: Felizarda. Era uma senhorinha de aproximadamente 80 anos. Me disse que estava preparando um vestido para sua filha. Perguntei a ela quando iria vê-la, mas não me respondeu e continuou realizando seu trabalho manual.

Observei que Felizarda tinha dificuldades em cortar o tecido. Imaginei que fosse devido a alguma disfunção motora. Mas em seguida me certifiquei que o problema era a tesoura. Além de estar com uma das extremidades quebrada, a tesoura precisava ser amolada. Prometi à Felizarda que na próxima visita iria dar a ela uma nova de presente, pois aquela que tinha em mãos já não tinha mais utilidade. “Esta tá ótima”, respondeu despretensiosamente. E continuou com extrema dificuldade realizando sua tarefa. Uma idosa que estava bem próxima de nós me disse que já faz um bom tempo que a Felizarda não recebe visita de familiares. Não procurei saber os motivos. Acho que a Felizarda nem se importava com isso. Disse à Felizarda: o vestido vai ficar lindo! Ela olhou pra mim e sorriu. Talvez eu nunca tenha visto um sorriso tão puro.

Mal sabe ela o quanto seu nome representou pra mim. O adjetivo felizarda deu lugar a um substantivo. Nas gramáticas, este fenômeno é chamado de derivação imprópria. Como professor de Português, lembrei logo disso. Agora Felizarda era nome próprio. E nomeava com propriedade alguém que merece o nome que tem. A palavra felizarda estava encarnada em alguém diante de mim. Estava eu diante de uma pessoa que era a acepção própria da palavra: pessoa feliz e de muita sorte. Sim, ela tem sorte. Sorte por estar em seu próprio mundo, por não dar a mínima para os infortúnios e por levar a vida à maneira dela. Desventura? O que é isso para ela? Fazia com afinco sua nobre tarefa de corte e costura sem se importar com nada ao seu redor. Nem com os nossos olhares atentos. Minutos depois, nos despedimos de Felizarda e prometemos a ela retornar em breve. Este dia não foi apenas um dia de visita ao asilo, foi o dia que tive a felicidade de conhecer alguém que me mostrou o que é ser realmente uma pessoa felizarda.


Fábio Rodrigo Gomes da Costa é professor e mestre em Estudos Linguísticos.

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