São Gonçalo como 'superfavela' precisa fazer sentido para quem a ocupa, por Fabiano Barreto
O Jornal Daki perguntou ao cientista social Fabiano Barreto: São Gonçalo: Essa cidade tem jeito? E ele respondeu assim:
Nem sempre ligar dois pontos em linha reta é o melhor a se fazer. Sugiro certo distanciamento, para fins de melhor compreensão.
Pesquisa divulgada pelo instituto Data Popular em 2015 revelou que, à época, 70% dos moradores de favelas brasileiras não tinham intenção de se mudar. Ainda que se admita o contexto e a complexidade inerente ao caso, não deixa de ser o coroamento de uma formação ideológica desempenhada por décadas, esculpida pela trama do dia-a-dia, além de incontáveis canções e, mais recentemente, lavrada no algodão de camisetas, numa síntese tão brilhante quanto vigorosa: 100% favela.
Desde seu surgimento, a favela é encarada social e politicamente no Brasil como problema, mas isso não impediu que fosse autolegitimada enquanto forma de ocupação territorial e, em última instância, de produção de memória. Em situações de colapso, apesar de todos os pesares, em nome da sanidade mental, a vida precisa ser justificada. A favela nunca teve jeito, mas converteu-se em instituição, desenvolveu o que chamo de fibra triunfal, tornou-se sinônimo de engenho e realização humana.
Diferentemente, São Gonçalo permanece diante de um grande desafio: tem formação urbana semelhante a muitas cidades metropolitanas brasileiras - uma mescla de regiões urbanizadas, suburbanizadas, favelas, etc. - sem que, contudo, lhe seja reivindicado, sequer pelo poder público local, o status civilizatório pretensamente compartilhado pelas congêneres.
Ainda que as condições de análise sejam precárias, se tentarmos instituir uma escala de valoração simbólica de expressões de territorialidade distintas, veremos que paraísos artificiais - como as vizinhas Niterói ou Rio de Janeiro - estarão no topo; a favela, em posição intermediária e; São Gonçalo, somente a seguir. Deserto de expectativas, zona lost...
Tempo e espaço são os elementos fundamentais da experiência humana e matéria-prima da produção de memória. Somos tempo e espaço. História e territorialidade são dimensões indivisíveis da vida. Do ponto de vista das representações coletivas, ao menos parte da população local não admite São Gonçalo como espaço genuíno de produção de memória. Este lugar é uma novidade constrangedora, integrante da categoria dos subúrbios onde a comunidade é empurrada para o “Estado de natureza”, no atacado - talvez venha daí sua comum interpretação como uma espécie de superfavela.
As histórias de nossas subjetividades e da própria espécie humana partem sempre de um lote de tempo, tempo espacialmente experimentado. Antes de “ter jeito”, esse território necessita mesmo é de fazer sentido na vida de quem o ocupa, precisa de uma apologia intransigente, apesar de tudo que se oponha a isso. E que felicidade poder notar que isso vem acontecendo!
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Fabiano Barreto é cientista social. Twitter: @fv_barreto
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