O VALE DOS TÍSICOS E A GENTE QUE RESISTE
Por Helcio Albano
“A moléstia não chegou sorrateiramente, como costuma fazer, com emagrecimento, febrinha, um pouco de tosse, não: caiu [...] de sopetão e com toda a violência, como uma machadada de Brucutu” Manuel Bandeira
Fiquei afastado durante um tempo de minhas atividades laborais, da família, amigos e redes sociais - tão caras à publicação e divulgação de material inédito do Jornal Daki. Tudo isso porque no dia 25 de setembro fui diagnosticado com tuberculose - na surpreendente, bem equipada e humanizada UMPA de Nova Cidade. Nesta unidade mesmo iniciei o tratatamento com medicamentos pesados e lá fiquei por dois dias e duas noites num quarto privativo com leito e todas as instalações necessárias à internação, esperando ser transferido em definitivo para o hospital Ary Parreiras, no Barreto, referência no tratamento da doença.
O Instituto Estadual do Tórax Ary Parreiras (IETAP), nome oficial do hospital, foi inaugurado em 1947, ainda no esteio dos antigos sanatórios, localizados em áreas arborizadas e afastados de grandes concentrações urbanas, numa época em que não havia medicamentos para a tuberculose, e o tratamento se resumia a decanso, alimentação, ar puro e banho gelado, dolorosamente inúteis frente ao alto índice de mortalidade. Pelo menos 8 entre 10 tísicos encontravam inapelavelmente a morte nas “antessalas do além” como eram conhecidos os sanatórios e o próprio Ary Parreiras.
A ambulância da Umpa nos deixa no hospital às 10:30 do dia 27 de setembro. Sou recebido numa sala aonde os tísicos recém-chegados são entrevistados, pesados e devidamente uniformizados após a abertura do prontuário de internação. Um nutricionista surge e me pergunta sobre possíveis restrições que eu pudesse ter na alimentação. De pronto eliminei abóbora e figo da dieta, informei que tinha refluxo gástrico e nada mais. Não sei por que razão, o cara tasca uma dieta para diabéticos e assemelhados. Eu, que já havia perdido 16 quilos devido aos bichinhos da tuberculose, me internei com 53 quilos e tive alta com 51,5 quilos depois de 74 dias hospitalizado. Soube da minha dieta ‘especial’ uma semana antes da alta. Foi ‘por engano’, disse meio atônito outro nutricionista. Todos ganhavam peso, menos eu. Minha médica, preocupada, receitou complexo b, ácido fólico e um super suplemento líquido - que, desconfio, é usado por astronautas da Nasa - quando era só mudar na prancheta do nutricionista o N/HL (que até hoje não sei o que significa) por N de normal.
Aliás, erros em hospital são a coisa mais comum do mundo, raramente noticiados pela imprena. Se eu não estivesse esperto tomava remédio trocado e seria furado por uma enfermeira que me confundiu com outro paciente. Também fui obrigado a ‘discutir relação’ com uma médica de plantão que cismou que eu não tomava os remédios. Um outro médico trocou as bolas do meu quarto e leito. “Vamos conversar e firmar um compromisso?”, dizia a médica com os olhos esbugalhados, ao mesmo tempo em que tinha a impressão de estar num quase-manicômio onde o doido era eu.
Porém, a médica pneumologista com papo de pisiquiatra tinha seus motivos em assuntar comigo o abandono dos remédios. Um número considerável e preocupante de pacientes abandona o tratamento de 6 meses assim que obtêm alguma melhora. A doença sempre volta mais resistente à medicação através de uma super-bactéria difícil de combater e de contágio mais fácil. O tempo de tratamento se estende de 6 para 18 meses, isso quando há tratamento possível. A taxa média geral de abandono do tratamento no Rio de Janeiro - estado com maior incidência e mortes geradas pela tuberculose - é de aproximadamente15%, índice altíssimo que encontra justificativas na realidade populacional do Ary Parreiras.
A maioria dos meus ex-colegas de infortúnio são oriundos do desamparo das ruas ou da miséria extrema dos becos sem luz do sol ou ventilação das favelas. Os que vêm da rua foram abordados ou literalmente resgatados por algum programa social nos municípios, que diagnosticam a tuberculose e procuram o IETAP para internação. A quase totalidade dos pacientes nessa situação possui algum tipo de disturbio mental e nenhum vínculo familiar. Além da tuberculose ser um problema clínico, ela passa a ser também um problema social para os profissionais de saúde que trabalham no hospital. A alta hospitalar para esses pacientes só é autorizada após o tempo integral do tratamento ou quando o Serviço Social do IETAP consegue contato e acolhimento de algum membro da família. A tuberculose os jogou dentro do Ary Parreiras; a miséria e a indiferença os mantêm lá. Como no curioso caso do tráfico de catarro, praticado pelos pacientes que não querem sair do hospital e voltar à situação de rua.
Depois de finalizado o prontuário de internação, uma assistente social fica encarregada de mostrar ao novo paciente as instalações e as regras do hospital antes de encaminhá-lo à sua enfermaria e leito. Cada quarto - que são amplos - tem quatro leitos, com camas hospitalares mecanizadas que nem sempre funcionam. Meu quarto e minha cama ficavam próximo ao posto de enfermagem e exatamente de frente ao banheiro masculino que também servia de vestiário. O lugar era estratégico à minha investigação, já que a estadia no IETAP viraria de qualquer forma um relato dos dias e das experiências ali vividas. Todos os tísicos da ala masculina eram obrigados a usar aquele banheiro: os que andavam e os cadeirantes, de tão debilitados pela doença. O banheiro era um ponto de encontro onde se falava (mal) de tudo: da comida, dos médicos, enfermeiros, da alta que nunca vinha, dos parentes que, de tão longe, eram como se obrigassem ao tísico uma ingrata existência.
Os dias da visita eram quinta e domingo. Por conta da falência do estado, os funcionários administrativos estavam em greve com escalas de trabalho de apenas uma vez por semana, o que acabou suprimindo as terças-feiras dos dias de visitação. Nem fez diferença. Pouquíssimos pacientes recebiam visitas, por dois cruéis motivos já mencionados aqui: desvinculação familiar ou incapacidade financeira de pagar o transporte até o hospital. Numa dessas visitas conheci a mãe de um paciente que não devia ter mais que 13 anos. Ela burlara os documentos do filho para que ele pudesse ser internado no IETAP que tem como protocolo não manter internados adolescentes e idosos. O garoto, que para todos os efeitos tinha 21 anos, já havia abandonado o tratamento em meio à vida insalubre e do consumo de crack no bairro do Salgueiro, em São Gonçalo. Passou por várias instituições que o sodomizaram e o humilharam. Vendo o filho doente novamente e desumanizado, não restou outra alternativa se não enganar o sistema para salvá-lo. A mãe visitava o filho quando tinha dinheiro para o ônibus e já recebia a graça do garoto dividir com ela a leitura da Bíblia, mesmo sendo analfabeto.
Quando me acomodei no leito já sabia o que encontrar pela frente, e só me restava a resignação de encarar a rotina dura do hospital e as regras de um tratamento longo em que os resultados, no meu caso, eram lentos e angustiantes. Assim como com o poeta Manuel Bandeira, “a moléstia não chegou sorrateiramente, como costuma fazer”, e não restou outra alternativa senão a internação quando na maioria dos casos o tratamento é feito em casa com acompanhamento clínico próximo à residência do doente. Aguentei firme as várias furadas de braço desnecessárias porque o material utilizado era chinês de baixíssima qualidade, dando pistas da situação financeira precária do IETAP.
O tempo era rigidamente marcado pelo barulho das rodinhas das mesas de refeição a cada três horas até às 9 da noite. Isso oprimia. A comida era ruim, mas um pressuposto para aguentar a medicação pesada. Para dormir, só à base de ansiolíticos. Foi aí que descobri que diazepan não é coisa de Deus nos diversos pesadelos que tive nas longas madrugadas do Ary Parreiras. O sono apenas viera após receber contrabando de rivotril do mundo exterior. Mas isso não impedia de ouvir os gemidos fortes dos pacientes com casos mais graves, deslocadados para nossa ala devido à superlotação da ala dos doentes com tuberculose multirresistente, com menos leitos. Numa noite, no quarto vizinho, os gemidos evoluem para uma tosse profunda. O pulmão de *Rogério ‘explode’ e ele vomita sangue ao lado de sua cama. Os colegas de quarto gritam pelos enfermeiros que dormiam. Rogério sai de sua cama e pisa no sangue viscoso no chão, escorrega e cai. O corpo pesado faz um pequeno estrondo. Quinze minutos depois os paramédicos dos bombeiros resgatam o quase defunto Rogério e os leva para um improvável CTI disponível no Rio de Janeiro. Não tive mais notícias do Rogério se vivo ou morto.
O tempo - marcado - foi passando. Voltei a ouvir, sempre desconfiado, a CBN e a acompanhar os jogos do Vasco. Mesmo com a visão arrebentada pelos remédios, finalmente consegui ler o Macumba do Rodrigo Santos e o Casa de Agonia, do Mário Lima Jr. Os dois valem uma resenha. Arrisquei com meus colegas algumas rodadas de sueca, mas o cansaço era grande e minha visão me traía: sempre dava ‘renúncia’ aos adversários. Já não sabia mais o que era copas e o que era espadas. Sobrava-me o convívio social com meus três colegas maluquinhos de quarto. Um tinha TOC severo, o outro era íntimo de seu amigo imaginário e o último fazia escambo com a comida servida, e numa dessas ele quase mata um diabético com um bombom. Um tísico desatento todo dia entrava no meu quarto por engano e sentava numa cama que se fazia sua. Virava e mexia aparecia uma figura peladona na porta do meu quarto antes ou depois do banho. Enfermeiros e trabalhaores da limpeza naturalizavam aquilo. Não podia ser diferente. Afinal, o Ary Parreiras tinha um pouco de hospício.
O meu caso era grave. Meu pulmão virou um queijo suíço com lesões da tuberculose e do cigarro que fumei por mais de duas décadas. Mas como fui um menino obediente e paciente por longos 60 dias de internação, tive o metabolismo do corpo reequilibrado e a tuberculose negativada, embora ainda com algumas lesões abertas que só irao se cicatrizar com o tempo - e que ainda me impedem de retomar plenamente a vida. E esse tempo não queria que fosse no hospital. Numa longa abordagem de convencimento que durou dias e que também envolveu minha mulher, convenci a médica responsável pela alta, “a pedido”. Os temores dela eram justificados. Sem a ajuda quase integral da minha mulher e condição financeira remediada para garantir a dieta, eventuais remédios e consultas, era impossível sair da internação.
Dias antes de minha saída do hospital, reparei um volume atípico de altas e que os leitos não eram preenchidos com novos pacientes. Uma assistente social abriu o jogo e disse que muitos técnicos de enfermagem estavam sem salários e os repasses para custeio do hospital eram cada vez menores. Fechar uma unidade infecto-contagiosa seria um escândalo de proporções internacionais, então a solução encontrada pela diretoria foi diminuir a oferta de leitos do IETAP. A minha ala tinha capacidade para mais de 60 leitos, quando saí não havia mais do que vinte pacientes. Além do IETAP, somente o hospital Santa Maria, em Jacarepaguá, é referência no tratamento da tuberculose, e as notícias que vêm de lá também não são boas. O Rio tem 61,2 casos da doença por 100 mil habitantes, taxas equivalentes a países miseráveis da África. São números ainda muito longes dos almejados pela OMS e Ministério da Saúde, que é de 10/100 mil habitantes.
Dessa experiência aprendi de verdade o valor da compaixão e quão iguais e frágeis todos nós somos.
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Relato pessoal do período de internação por tuberculose no Instituto Ary Parreiras de 27 de setembro a 8 de dezembro de 2017. Publicado em 20 de janeiro de 2018 e atualizado em 19 de abril de 2020.
Helcio Albano é jornalista e editor-chefe do Jornal Daki.