Acendendo vela para o defunto errado
Encontro na padaria o entendido de futebol, envergando seu manto azul-grená de ambições importadas, que me diz sem sotaque: “O Campeonato Carioca deveria acabar!”. Eu, esperando meus duzentos gramas de mortadela (defumada), apenas sorri de lado. Sei que deveria anuir para evitar maiores querelas, mas não consigo ser concupiscente com a mediocridade. “Você não acha? Um campeonato medíocre, que não dá dinheiro nem prestígio para os clubes...”
Meu caro leitor (trato no singular porque sei da escassez de meu público, então estou falando com você), nesta hora pensei em mandar a tudo às favas, e partir para a violência. Não que eu acredite que a violência seja uma opção – não, não é – mas há algumas cavalgaduras tão singelas para quem uma porrada bem dada na cabeça pode ser até terapêutico.
Não há como medir o Campeonato Carioca em renda, ou prestígio internacional. O Campeonato Carioca tem um capital emocional e histórico que não pode ser igualado por nenhum torneio no mundo, seja de futebol ou de qualquer outro esporte. Bom, ouvi falar de um certame realizado entre os remanescentes das nobres casas escocesas, uma disputa de lançamento de troncos... Mas não, nada se iguala ao Campeonato Carioca.
Ser chamado de “carioca” já é uma gabolice. O campeonato engloba não apenas os times da capital, mas de todas as cidades fluminenses. Mas “carioca” dá um charme especial, uma leveza de espírito e ginga que só o carioca tem. Quem mora no Rio se move com a graça das ondas, e sorri com a espontaneidade de um temporal (que aparece na hora que bem quer). As agremiações que o compõem são centenárias senhoras de muito bom gosto, que já rodaram o mundo e revelaram para o futebol grandes atletas. Seus estádios já testemunharam momentos de puro êxtase, e são emoldurados por ruas, casas e pessoas dignas da paixão que carregam.
E a rivalidade? Qual é a graça de se ganhar de um Manchester, um Juventus, um Benfica? Nem mesmo a seleção me dá tanto prazer – ou alguém aqui liga pra Buenos Aires após uma vitória contra os Hermanos? O que seria da resenha esportiva diária sem os calorosos (e calosos) debates infinitos entre flamenguistas e vascaínos e tricolores e botafoguenses?
O campeonato tem seus problemas? Tem, como esta mortadela defumada que vem mal cortada a minhas mãos. Mas acabar com o campeonato para eliminar seus defeitos é como banir a mortadela defumada da padaria para encobrir a incompetência do atendente (é o Sidnei, gente boa, mas nunca aprendeu a cortar mortadela direito), por isso prefiro me contentar com as fatias assimétricas.
Acenei adeus para o entendido, que já corria para casa para assistir ao campeonato inglês e praticar sua torcida de sofá. A menos que sua conta de telefone seja altíssima devido às ligações para a Rainha, prefiro o glamour de pintar de rubro-negro a casa do vizinho botafoguense, ou constatar que não há camisa tricolor masculina à venda nas lojas esportivas – são todas femininas. Tive vontade de rebater seus argumentos, dizer que não, nunca, que há muito a ser feito, mas o Campeonato Carioca não pode acabar. Argumentar que em primeiro lugar, é preciso sanar o Campeonato. Eliminar os parasitas da FERJ, revitalizar os estádios, apoiar as subdivisões para fortalecer os times de menor investimento. E que em segundo lugar, o Vasco. Mas desisti, antas midiáticas preferem as soluções prontas vendidas pelos programas esportivos, que ficam apresentando as maravilhas das fatias de mortadela cortadas com perfeição, sua textura e simetria. Preferem ficar babando na TV com o que não têm a melhorar o que está em seu alcance. Ou degustar a imperfeição que lhes é oferecida.