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O caso da ilha: a vida e a morte de Luz del Fuego - por Erick Bernardes


Imagens: Arquivo - Reprodução/Arte: Jornal Daki
Imagens: Arquivo - Reprodução/Arte: Jornal Daki

Seria um bom trecho de música, se tudo não houvesse acontecido algum tempo atrás na Ilha do Sol. Pois é, inevitável reconhecer que o destino quis dar a São Gonçalo um enredo triste. Uma pena mesmo, lacuna aberta na alma da cidade, malvadeza cometida aqui e transformada em lembrança quase apagada.


Bem, trata-se da morte de uma das mulheres mais ousadas da história nacional. Sim, infelizmente, foi às margens da Praia da Luz onde o caso aconteceu. Alguém assassinou a imponente Dora Vivacqua, mais conhecida pelo nome artístico de Luz del Fuego. Sim, crime mesmo, a artista performática cismava em dançar com serpentes amestradas. Adorava vestir-se para espetáculos de palco em trajes típicos da personagem Cleópatra. Porém, não chegou ao topo do sucesso tão planejado, pois a inveja fez questão de mostrar seu lado sombrio. Arrancaram a vida da dançarina, mataram-na e jogaram o corpo na água. Absurdo! Ruindade mesmo, ação cruel, usaram de intolerância só porque a vedete destacou-se no quesito sensualidade. Afirmou-se na imprensa que Luz del Fuego havia sido encontrada morta junto a um dos seus funcionários. Reconheceram os dois corpos entre a vegetação do mangue, logo após realizar lindíssimo espetáculo.


Antes de ceifarem a vida da musa erótica, a representação musical levou ao delírio uma porção de brasileiros. Impossível não reconhecer a imponência de quem foi ícone carioca e pagou o preço com a própria vida. Só não se soube até hoje quem lamentou e quem comemorou o óbito da artista. Coisas obscuras aconteciam nas décadas de 60 e 70, haviam complôs; sumiam gentes; calavam-se vozes. Tentaram suprimir com propaganda contrária os eventos de nudez da dançarina. Intencionaram não poucas vezes calar o sucesso da sua arte, mas antes disso, crescera-lhe o número de fãs, aumentando na mesma proporção a inveja. Dizem que naquela noite, prefeitos, vereadores e deputados dos distritos vizinhos também prestigiaram o evento. “Esplêndida!” Reconheceu o barqueiro oficial da praia a suntuosidade do espetáculo. “Era prazeroso fazer o transporte dos clientes sobre as águas. Pessoas bonitas. Beleza de gente”. Os jornais também noticiaram: “Luz Del Fuego dançou nua e enrolada nas duas serpentes de estimação”. E decerto confirmariam depois, jiboias enlaçavam o colo e o pescoço da artista, conferindo a ela certos ares de misticismo. A arte da performance ganhou na Guanabara o seu espaço, ou melhor, ganhou o mundo. Os tabloides anunciaram a chegada de atores e atrizes de Hollywood só para assistir à nudez artística e participar das mil e uma noites exóticas promovidas pela brasileira. Aportaram na ilha figuras como Lana Turner, Ava Gardner, Tyrone Power, Errol Flynn, Glenn Ford, Cesar Romero, Brigitte Bardot, e muitos outros famosos compareceram, decerto. Frequentadores de todas as classes e lugares distintos aplaudiam. Deslumbrante! Aplausos. Incontáveis palmas e assovios ecoaram vezes sem conta pela baía afora. Quer fosse na praia, quer fosse em algum barco, ou até num farol apagado, não importava. Fato é que toda a redondeza da Guanabara ouviu como música as ovações dedicadas àquela figura singular.

Sabe-se que tempos antes da sua morte, Luz del Fuego havia comprado a pequena ilha rochosa em São Gonçalo e inaugurado um resort naturista. Aproveitando-se de uma soma em dinheiro recebida repentinamente, ela deu vazão à fantasia transformando o sonho em realização pessoal. Saiu nos jornais da época, pioneira no assunto. Nascera em Cachoeiro de Itapemirim, no estado do Espírito Santo, e acabou inaugurando o nudismo em meio à natureza caiçara. Escândalo total. Ainda hoje afirmam haver indícios da antiga construção do seu movimentado cabaré. Triste fim. Os sons alegres das comemorações e das jogatinas não se ouvem mais: destruíram quase tudo dos tempos áureos de antigamente. Hoje, visitantes curiosos atravessam as águas da Baía de Guanabara só para conhecer o lugar. Sim, ainda tem quem queira visitar e tirar fotos dos escombros do foi o teatro outrora. A história segue aos poucos transformando-se em ficção com vistas a ilustrar o imaginário popular. Se existiu mesmo tanta fama assim para o tal cabaré na Ilha do Sol? Não sei, confesso que não sei bem. Mas as ruínas estão lá, só não sabem afirmar ruínas de quê e destruídas por quem. Tudo tende a ser esquecido no Brasil, inclusive a violência.

Quem passa hoje ao largo do shopping gonçalense, e visualiza a ilhota iluminada pelos raios solares, não tem ideia do que subjaz aos motivos da maldade. Decerto as atividades da artista incomodavam muita gente. Ah, como era bela a Luz del Fuego! Mulher imponente demais, destacara-se até como escritora na redação de livros. Impossível não reconhecer tamanha facilidade em causar desconfortos na tradicional sociedade. Ao construir espaço de atrações, obteve o seu quinhão de fama. Entretanto, houve obscuridade envolvida no assunto, gente disposta a usar de violência no intuito de frear o sucesso. Tempos sombrios. Contexto marcado por silenciamentos.

Enfim, se aquele cenário paradisíaco houvesse servido de história romântica para celebrar o amor, certamente diluíra-se no tempo. Porque, quisera o destino (pra não dizer maldade dos homens) trazer a São Gonçalo o desfecho trágico de uma história de intolerância. Isso sim, deveria ser lembrado: violência contra a arrojada mulher em vias de ascensão. Hostilidade terminada com morte. E tudo começou algum tempo atrás, vendo estrelas caindo e vendo a noite passar... como ferida aberta, na Ilha do Sol.

***

Nota do editor: Dora Vivacqua (Luz del Fuego), destacou-se como pioneira na implementação do naturismo no Brasil entre os anos 1940 e 1950, tendo sido a fundadora do primeiro reduto naturista da América Latina (São Gonçalo) e a primeira nudista brasileira. Foi brutalmente assassinada em 19 de julho de 1967 junto ao seu caseiro, na Ilha do Sol, por dois pescadores.


>>> Texto originalmente publicado em 12/08/2018.

 

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Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.


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